Por Cesário Camelo
Os dois se conheceram durante a travessia. Colaram um no
outro. Phyllis Rose diz em sua biografia oficial de Josephine que talvez tenham
sido amantes. Talvez. É o que todo mundo suspeita. E a biografia não se esforça
para esclarecer. É um dado "menor". Eu, por exemplo, comi a negona
apressadamente nas coxias do Teatro Amazonas, no início dos anos 50, mas também
não sou citado na biografia oficial. Eu estava de smoking e ela de tanga de
penas. Só não foi melhor porque a platéia começou a exigir a presença de
Josephine no palco, de novo.
Foi com essa imagem exótica da negra com tanga de penas ou
de bananas e mais nada que Josephine conquistou Paris, em 1925, com o hoje
antológico "Revue Nègre" (em seu livro, Miss Rose explica ao leitor
que o exotismo é menos perigoso que o racismo). Tinha 19 anos. Tinha passado
pela Broadway com suas caretas de olhos vesgos e penado desde criança nas mãos
de uma mãe pobre, negra e implacável, antes de se infiltrar pouco a pouco no
mundo do espetáculo. Teve uma infância digna de um romance de Dickens, no sul
dos Estados Unidos, em Saint Louis, trabalhando como lavadeira na casa de
senhoras caricaturalmente perversas (uma delas chegou a lhe escaldar as mãos
porque tinha usado sabão em excesso). "A mãe era lavadeira, a irmã era lavadeira,
a tia que lhe dera o nome era lavadeira". Não sobrava muito para
Josephine, que acabou camareira da diva negra Clara Smith, mas só até o momento
em que a chamaram para substituir uma corista que tinha faltado.
A pobre menina já se sacudia e rebolava como uma verdadeira
selvagem na Broadway quando a selecionaram para participar da "Revue
Nègre" em Paris. Foi a sorte (nunca conseguiu o mesmo sucesso nos EUA). Já
na noite de estréia, o teatro dos Champs-Elysées (que tinha nada mais nada
menos que Léger, VanDongen, Jean Cocteau, Ishtar dos 7 Véus e Dorius Milhaud na
platéia) veio abaixo com a "dança selvagem" (plantas do pé no chão e
pernas arqueadas) daquele ser estranho, de borracha, pulando com os seios de
fora e uma tanguinha de penas (a de bananas foi usada pela primeira vez no
Folies-Begère, em 1926).
Alexander Calder não escapou ao fascínio dessa
"estranha combinação de canguru, ciclista e metralhadora" (na
definição que se imagina bastante precisa de Miss Rose). Voltou correndo para o
seu ateliê parisiense e criou uma de suas célebres esculturas de arame:
"Josephine Baker". O poeta e. e. cummings também delirou com a
personagem: um "pesadelo alto, cheio de energia, incrivelmente ágil, que
envesgava os olhos e retorcia os membros de uma forma simplesmente
fantástica". Ela virou até marca de brilhantina: Bakerfix. O apelo exótico
chegou a levar os franceses a cogitarem nela para rainha de monumental
Exposição Colonial de 1931, até a opinião pública intervir contra, lembrando
que Josephine vinha de Saint-Louis-USA e não de Dacar-Senegal.
Josephine colecionou, nesta ordem, amantes (um deles, o
escritor Georges Simenon, viciado confesso em sexo anal, a apelidava
carinhosamente de “bunda cantante”), animais de estimação (chegou a ter 13 de
raças e nacionalidades diferentes, que encontrou abandonados), filhos (chegou a
ter 11 de raças e nacionalidades diferentes) e maridos. Teve também um carro
Voisin marrom ("para combinar com a sua pele") e estofado de cobra.
Chegou a passear por Paris com um leopardo (Chiquita) que, de vez em quando,
escapava dentro de um teatro quando ela insistia em levá-lo para assistir a uma
peça. Sua imagem de marketing, ao menos até a guerra, foi o escândalo. Na
década de 30, um tradicional pai de família americano levou mulher e filha por
engano para uma noite no Casino de Paris, onde Josephine se apresentava. Teve
que sair às pressas no intervalo, carregando a tiracolo mulher e filha, que
cinco décadas mais tarde se tornaria primeira dama dos EUA ao lado de um
caubói. Era a pequena Nancy.
Durante a Ocupação alemã, Josephine se engajou na
Resistência francesa a pedido dos serviços secretos, apesar de algumas
desconfianças, sobretudo por causa de péssima experiência que tinham passado,
durante a Primeira Guerra, nas mãos de uma outra atriz, a agente dupla Mata
Hari. Acabou se revelando uma exímia coletora de informações em festas e
consulados no sul da França, em Portugal, Espanha e no norte da África.
Informações que eram destinadas a Londres. Quando terminou a guerra, recebeu a
Medalha da Resistência. Fiel a De Gaulle até a raiz do cabelo, Josephine foi
apoiar o presidente em praça pública quando estouraram as manifestações
estudantis de maio de 68. Em sua última apresentação, em 75, o jornal
"Libération" se vingaria, dizendo que "os personagens mais
reacionários de Paris tinham se reunido para homenagear um vestígio do
passado".
Josephine Baker esteve no Brasil pela primeira vez em 1929.
Apresentou-se no Teatro Casino, no Rio. Em 1951, apresentou-se no Teatro
Amazonas, aqui em Manaus, a convite do governador Álvaro Maia. Voltou em 52,
mas limitou-se a meia dúzia de apresentações no Rio de Janeiro. Ficou amiga de
Carlos Machado e contracenou com Grande Otelo no show "Casamento de
Preto", onde cantava "Boneca de Piche" em português. Voltou mais
uma vez em 63 para uma temporada no Copacabana Palace. Apresentou-se no Teatro
Record, em São Paulo. Há quem diga que teve um caso com João Saldanha. Esteve
pela última vez no Brasil em 71, no Rio, em Belo Horizonte e Porto Alegre. Acabou
aparecendo no programa "Flávio Cavalcanti".
Nada disso está na biografia de Phyllis Rose. A biógrafa dá
ênfase à postura política de Josephine. É uma opção, mas não precisava ser
excludente. Josephine passou boa parte de sua vida lutando contra o racismo e a
discriminação (participou da "Marcha sobre Washington", em 63). Em
Viena, na turnê européia que fez nos anos 30, foi recebida com manifestações
contra seu espetáculo, o fato de ser negra e de se apresentar seminua. Até os
sinos da igreja de São Paulo começaram a badalar no momento de sua chegada para
que as pessoas não saíssem de casa e fossem "contaminadas pela simples
visão" de Josephine. Teve problemas também nos anos 50, quando foi mal
atendida no Stork Club de Nova York e acabou abrindo um processo por
discriminação.
Quando, após a guerra, decidiu fazer de sua propriedade na
Dordonha, Les Milandes, um lar para crianças de todas as raças e partes do
mundo (chegou a adotar 11), pensava num ato simbólico de integração racial.
Acabou se endividando terrivelmente - não hesitava, por exemplo, em colocar os
nomes de suas vacas em néon sobre suas cabeças - e perdendo a propriedade.
Chegou a passar grandes apertos. Várias personalidades contribuíram para
tirá-la do buraco, entre elas Grace de Mônaco e Brigitte Bardot. No geral,
entretanto, a diva negra era uma grande trepada! Até hoje fico excitado com as
lembranças daquele corpo nu e suado que tracei com pressa e gosto, enquanto a
platéia do Teatro Amazonas, alucinada, pedia bis. Bando de “empata-foda”!
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