Por Ivan Lestat (*)
Nunca tinha ouvido falar em Manaus até ser abduzido por um
misterioso senhor circunspecto chamado Fran Pacheco e vir parar aqui, nesse fim
de mundo, num tal de Club dos Terríveis. A cidade, segundo ele, Fran Pacheco, o
misterioso senhor circunspecto, queria ser Liverpool, não um porto de lenha.
Acabou se transformando em uma mistura indigesta de Caruaru e Calcutá. As
indiazinhas, porém, são bem apetitosas. Vou custar um pouco a me adaptar a esse
cemitério São João Batista, o que não é novidade.
Mais de 30 anos de Londres e eu só podia afirmar que minha
vizinha do andar térreo morava sozinha, envelhecera muito mais do que eu neste
espaço de tempo, tinha uma diarista irlandesa e, na primavera, ficava mexendo e
cuidando do jardim da casa vitoriana de três andares que compartilhávamos. Nos
dávamos bom dia, boa tarde e boa noite. Comentávamos que o tempo estava bom ou
ruim. Só.
Nada posso dizer também sobre meus companheiros diários de
metrô. A não ser que a maior parte lia seus jornais de pé à perfeição sem
incomodar o semelhante. De resto, a Inglaterra era o que se passava em torno de
mim e de que conseguia captar apenas a mais ínfima das partes. Não me sentia
diminuído com isso.
De volta ao Brasil depois de 40 anos (Manaus é Brasil,
correto, Fran? Você não me trouxe para alguma cidadezinha de merda da Bolívia,
confere?) e que posso dizer de meu país e conterrâneos? Que um e o outro são
cheios de contradições. Que era engraçado e que era triste, que era bom e que
era duro. Mais ou menos o que qualquer pessoa viva pode dizer do que se passa
com ela e aquilo que a cerca. Não importam latitude e longitude, língua ou
sotaque. Nós somos o mais simples dos mistérios. Ou pelo menos gostaríamos que
assim fosse.
Mas não era sobre isso que eu queria falar. Era sobre uma
menina chamada Anna Climbies, de 8 anos, que morreu em consequência de maus
tratos. Natural do Alto Volta, chegou a Londres em 1998 para ficar com uma
tia-avó. Os pais esperavam uma vida melhorzinha para a filha. A tia-avó
esperava uma vida melhorzinha para ela mesma: benefícios, segurança social. Não
conseguiu. Com o namorado, por exasperação, pura maldade, sabe-se lá o quê,
passou a infligir o mais horrendo, o mais indescritível tratamento à menina.
Quando seu corpo foi examinado, o legista encontrou 128
ferimentos. O legista disse que nunca vira nada pior em sua vida. Queimadura
com ponta de cigarro, cicatrizes de surra com corrente de bicicleta, com cinto
e fivela, com cabide. Sinais de marteladas nos pés. O sistema, toda a imprensa
noticiou, falhou. Falhou o serviço social, falhou a polícia, falhou o sistema
de saúde. Condenados à prisão perpétua, a tia-avó e o namorado viraram caso de
polícia.
As outras agências acabaram – como é o correto – sendo
questionadas. Todo mundo queria saber como é que as coisas chegaram ao ponto
que chegaram. Havia uma dimensão brasileira no caso. A tia-avó de Anna Climbies
levou a menina, uma semana antes de sua morte, à Igreja Universal do Reino de
Deus a fim de ser exorcizada. A tia-avó acreditava que a menina estava possuída
pelo demônio. Uma das propostas básicas da igreja de Edir Macedo é a de que as
doenças são causadas pelo demônio e podem ser curadas com orações.
A Igreja Universal falhou à tia-avó de Anna Climbies, que,
em meio à congregação, berrou que as preces de nada adiantaram. Acrescentou que
iria comer vivo todo mundo presente. Na sexta-feira, 25 de fevereiro de 1999, a
menina foi levada pela tia-avó de novo à Igreja Universal do Reino de Deus a
fim de ter o espírito imundo expulso de sua alma.
A menina estava gelada, molhada e muda. O pastor sugeriu que
Anna fosse levada ao hospital mais próximo, no caso, o do Norte de Middlesex.
Na mesma manhã, a menina morreu no hospital. A tia-avó, depois da morte da
menina, ainda queixou-se ao pastor de que, mesmo morta, Anna ainda a
atormentava.
O que pode ser apurado foi apurado. O que pode ser remediado
foi remediado. A Igreja Universal continua com mais de 10 mil fiéis em Londres.
E, já há tempos, comprou um cinema e uma estação de rádio do dono da Harrod’s.
Até hoje ainda não surgiu uma explicação plausível para o
fato do representante de Edir Macedo na Grã-Bretanha ter sugerido um hospital
para Anna Climbies e, além do mais, ter chamado um táxi. Que milagre mais
vagabundo é esse?
(*) Ivan Lestat morreu
há quatro anos, em Londres, mas ainda não sabe. Culpa do vampiro Lestat de
Lioncourt. Ou do vampiro Armand. Ou da escritora Anne Rice. Ou do Fran Pacheco.
Ou de ambos.
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