Atualmente pode-se encontrar o rosto de Edgar Allan Poe reproduzindo em
tudo, desde paredes de livrarias até garrafas de cervejas. Mas nem sempre foi
assim. O mais famoso produto de exportação literário dos Estados Unidos morreu
na miséria e amplamente antipatizado em seu próprio país. Coube aos franceses
(que insistem em se referir a ele como “Edgar Poe” por razões desconhecidas)
ressuscitar a sua reputação e elevá-lo ao status de ícone que ele desfruta hoje
em dia. Obrigado, François. Podemos conversar sobre Jerry Lewis mais tarde.
Edgar Allan Poe foi o pai da ficção macabra, um escritor cujas histórias
sinistras e poemas perturbadores pavimentaram o caminho para H. P. Lovecraft e
Stephen King. Ele também tinha medo do escuro. “Acredito que os demônios se
aproveitam da noite para enganar os incautos”, ele certa vez confessou a um
amigo. “Embora, é claro”, apressou-se em acrescentar, “eu não acredite neles”.
Talvez Poe simplesmente pressentisse que estava vivendo sob uma nuvem negra. E
não se poderia culpá-lo por isso.
Órfão aos três anos, ele foi criado por um rico casal, John e Frances
Allan, em Richmond, Virgínia. Criado, e não adotado, pois o arrogante John
Allan recusava-se a permitir que o filho de atores de teatro corrompesse a
pureza da sua árvore genealógica. Assim mesmo, Poe passou a usar o sobrenome do
pai “adotivo” como seu nome do meio. Ele herdou também um pouco do pedantismo
de John. Além de afeto, outra coisa que John Allan falhou em oferecer ao filho
adotivo foi dinheiro. Na verdade, a penúria foi uma marca constante na breve
vida de Poe.
Na Universidade de Virgínia ele acumulou dívidas de jogo para satisfazer
suas necessidades, que na época incluíam copiosas quantidades de álcool. O
padrão se repetiu quando Poe ingressou na Academia Militar em West Point, em
1830. Provando ser uma vergonha ao uniforme, ele passava a maior parte do tempo
bebendo e planejando meios de ser expulso. Em janeiro de 1831 finalmente obteve
sucesso. Desobedeceu a ordens diretas e deixou de comparecer aos treinamentos
com frequência suficiente para ser acusado pela Corte Marcial por “Absoluta
Negligência ao Dever”. Ele detém a duvidosa e dupla distinção de ter sido o
único grande escritor norte-americano e ter frequentado West Point e o único a
ser expulso.
Poe encaixa-se nos moldes do clássico beberrão fracassado. Um colega de
universidade escreveu que “a paixão dele por bebidas fortes era tão
característica e peculiar quanto a paixão pelas cartas... sem nem mesmo um gole
para provar, ou um estalo de língua, ele agarrava um copo cheio e o virava num
só gole”. Mas aquele único copo normalmente era o bastante para levá-lo a um
coma alcoólico.
Parte do problema era, sem dúvida, a sua constituição frágil e a
predisposição às doenças. Em West Point, Poe tinha a aparência tão frágil e
envelhecida que os outros cadetes brincavam, dizendo que seu pai adotivo havia
tomado o seu lugar. Com o tempo, John Allan acabou ficando tão farto dos
hábitos dissolutos de Poe que o repudiou, prometendo mandar prendê-lo se ele
algum dia aparecesse em sua propriedade.
Destituído de dinheiro e de família, Poe foi morar com uma tia, Maria
Clemm, em Baltimore. Também começou a escrever contos para revistas. Em 1836,
aos vinte e sete anos, casou-se com sua prima de treze anos, durante os quais
foi repetidamente alertado sobre a impropriedade de se casar com uma garota tão
nova. Juntos, eles se mudaram várias vezes – para Nova York, para Filadélfia e
para Nova York novamente. Poe estava sempre um passo à frente dos seus credores
e a um gole de distância da prisão por embriaguez. Então, justamente quando a
sua carreira como escritor começou a progredir, sua esposa contraiu tuberculose
e morreu.
A vida de Poe foi realmente um pesadelo e teve uma conclusão
adequadamente onírica. Em uma parada em Baltimore durante uma viagem para Nova
York, no final de setembro de 1849, ele desapareceu por cinco dias. Foi
recolhido na rua, em frente a uma taverna irlandesa, semiconsciente e bêbado
como um gambá, usando roupas maltrapilhas que claramente pertenciam a outra
pessoa. Internado no Washington College Hospital, o delirante poeta passou os
dois dias seguintes clamando por um misterioso homem chamado Reynolds e
implorando ao médico atendente que explodisse o seu cérebro. Finalmente,
gritando em seu leito “Senhor, socorra a minha pobre alma!”, ele emborcou para
trás e morreu.
Ninguém sabe ao certo o que aconteceu durante aqueles cinco dias
perdidos. As evidências sugerem que Poe talvez tenha sido sequestrado por uma
gangue de capangas de políticos, que o embebedaram e o forçaram a falsificar
votos nas urnas eleitorais da eleição para prefeito de Baltimore. A decorrente
bebedeira pode ter exacerbado uma doença já existente, tal como sífilis,
diabete ou talvez hidrofobia.
Qualquer que tenha sido a causa, sua morte foi extremamente desagradável
– bem como a reputação que lhe foi imputada pelo seu primeiro biógrafo, um
amargurado editor chamado Rufus Griwold, cujo trabalho Poe certa vez criticou
duramente na imprensa. As “memórias” de Griswold, publicadas em 1850, descrevem
maldosamente Poe como um degenerado, viciado em drogas que praticava sexo
incestuoso com a própria tia. Foi um acerto de contas barato, repleto de
falsidades, mas décadas se passaram antes que o “sistema” literário (com uma
pequena ajuda dos franceses) finalmente aceitasse Poe no panteão dos grandes
autores norte-americanos.
A soma de todos os medos
Não era de admirar que Poe tivesse medo do escuro. Ele foi educado em um
cemitério – literalmente. Quando frequentou um internato na Inglaterra, sua
classe ficava ao lado de um cemitério. Mesquinho demais para comprar livros
didáticos, o professor dava aulas de matemática ao ar livre, em meio aos mortos
que jaziam em seu sono eterno. Cada criança era instruída a escolher um túmulo
e, depois, a descobrir a idade do falecido fazendo a subtração do ano do
nascimento e o ano da morte. As aulas de ginástica também transcorriam nesse
mesmo ambiente agradável. No primeiro dia de aula cada aluno recebia de
presente uma pequena pá de madeira. Se um dos membros da paróquia morresse
durante o semestre, as crianças eram enviadas para escavar a cova, praticando,
dessa forma, revigorantes exercícios aeróbicos.
“Você entrou pelo cano”, disse
o corvo
Poe tinha grande orgulho de O Corvo,
chamando-o de “o mais grandioso poema jamais escrito”. (A modéstia não era um
dos seus pontos fortes.) No entanto, ele ganhou quase nada com essa obra,
graças, em parte, à sua ignorância das leis de direitos autorais. Ansioso por
ver a sua criação impressa, ele a publicou num jornal, o New York Evening
Mirror, sem saber que isso o eximiria de toda proteção dos direitos autorais.
Qualquer pessoa poderia reproduzir o poema – e muitas o fizeram, com lucros
consideráveis. Quando Poe finalmente conseguiu publicar a sua própria edição, o
poema já tivera um circulação tão ampla que ninguém a comprou.
Dickens perde a mão
O famoso corvo de Poe, na verdade, foi inspirado pela ave de estimação do
escritor britânico Charles Dickens. O pássaro tagarela de Dickens aparece como
personagem em seu romance de mistério Barnaby
Rudge, que Poe resenhou em 1841. Poe elogiou Dickens pelo uso do corvo
falante, considerando que ele deveria ter desempenhado um papel mais importante
na trama.
Quando Dickens e Poe se encontraram pela primeira e única vez, em 1842,
o estimado pássaro havia morrido recentemente. (Ao que parece, ele havia bebido
a tinta de um tinteiro que Dickens deixara aberto em sua mesa.) Dickens relatou
o triste caso a Poe, que voltou para casa naquela noite e inseriu um agourento
corvo falante no já existente poema chamado To
Lenore, que ele havia abandonado. “Lenore” rimava perfeitamente com “Never
more”, que se tornou o famoso mantra do sinistro pássaro negro.
Quanto os poetas atacam
Não há mais divertido do que uma briga entre poetas. O arquinemesis de
Poe foi Henry Wadsworth Longfellow, o famoso autor de A Canção de Hiawatha e outros poemas. Por motivos ainda obscuros
quase dois séculos depois, Poe foi de uma amável admiração a uma franca hostilidade
em relação ao homem, à sua poesia e ao seu caráter. Em 1840 escreveu uma
crítica contundente ao último poema de Longfellow, acusando-o de tê-lo plagiado
de Alfred Lord Tennyson. Quando isso não provocou nenhuma reação, Poe afirmou
que Longfellow havia roubado também um dos seus poemas. A chamada “Guerra
Longfellow” estava declarada.
Infelizmente para Poe, tudo não passou de desperdício de munição. Ele
nunca apresentou nenhuma prova de que Longfellow fosse plagiador e o poeta da
Nova Inglaterra recusou-se serenamente a responder aos ataques ad hominem de seu colega mais jovem.
Depois da morte de Poe, Longfellow tinha apenas elogios a lhe fazer,
acrescentando: “Jamais atribuí a severidade das suas críticas a nada além da
irritação de uma natureza sensível, acirrada por um indefinido senso de
injustiça”. Ora, ora.
Acima, acima e avante
Poe não estava acima de um pequeno embuste jornalístico, principalmente
quando o dinheiro andava curto. Em abril de 1844, um quase falido Poe vendeu
uma reportagem ao New York Sun sobre a primeira travessia transatlântica de um
balão em todo o mundo. “O grande problema finalmente está resolvido”, ele
escreveu, triunfante. “O Ar, bem como a Terra e o Oceano, foi subjugado pela
ciência e se tornará uma comum e conveniente estrada para a humanidade”.
O artigo de Poe, incrivelmente bem bolado, de cinco mil palavras,
prosseguiu descrevendo em detalhes requintados o dirigível em questão, o seu
operador (um balonista verdadeiro chamado Monk Mason) e a viagem em si. Havia
um único problema: era tudo mentira. No dia seguinte, o Sun publicou um
retratação: “A correspondência vinda do sul... não tendo trazido da Inglaterra
a confirmação sobre o balão... estamos inclinados a acreditar que a informação
é errônea”.
Enterrado de novo
A nuvem negra de má sorte que parecia perseguir Poe durante toda a sua
vida continuou pairando mesmo depois da sua morte. A lápide encomendada para
demarcar sua sepultura foi atropelada por um trem descarrilado. Como resultado,
até que seu corpo fosse exumado e novamente enterrado em 1875, ele descansou
sob um genérico marcador de sepultura que indicava apenas “Nº 80”.
Saúde, companheiro!
Qualquer um que tentar comercializar equipamentos de cozinha da marca
Poe terá de ajustar conta com uma sombria figura conhecida como o “The Poe
Toaster”. Todos os anos, desde 1949, esse estranho misterioso, usando uma capa
preta, tem aparecido no túmulo de Poe na noite do aniversário do poeta. O fã de
cemitério talvez se pareça mais com um personagem de um dos contos macabros de
Poe, mas como os coveiros (e os numerosos acadêmicos que debatem o assunto)
poderão dizer, ele é bem real.
O ritual é sempre o mesmo: ele faz um brinde ao falecido e depois deixa
no túmulo meia garrafa de conhaque e três rosas vermelhas, como símbolos de
admiração. Por que três rosas? Elas podem representar Poe, sua sogra e sua
esposa, todos enterrados no mesmo jazigo. Por que conhaque? Ninguém sabe. Por
que tudo isso? Em respeito a Poe e à solenidade dessa cerimônia anual, ninguém
jamais tentou interceptar o estranho “brindador” para perguntar.
Todo mundo é um crítico
Poe parece dividir a comunidade literária. Existem aqueles, como os
franceses, que o reverenciam como um deus. E há aquele que não o suportam, nem
sua obra. Os mais notáveis detratores de Poe incluem T. S. Elliot, que o
descreveu como tendo “o intelecto de uma pessoa altamente bem-dotada, antes da
puberdade”, Mark Twain, que certa vez comentou: “Para mim, a prosa dele é
ilegível – como a de Jane Austen” (um raro golpe atingindo dois pelo preço de
um) e W.H Auden, que disparou o ataque mais pessoal, descartando Poe como “um
tipo indigno de homem, cuja vida amorosa parece ter sido totalmente confinada a
chorar em colos e a brincar de ratinho”.
Parente de Poe
O ator Edgar Allan Poe IV, descendente direto do mestre do macabro,
conquistou uma boa milhagem em sua carreira graças à associação com seu tatara-tio-avô.
O quarto Poe atuou no papel do primeiro Poe no filme chamado Monkeybone e, em 1999, em um episódio de
Sabrina the teenage witch. Quando não
estava imitando seu parente lendário, ele se especializou em retratar bandidos
enlouquecidos e camelôs de feira em filmes como Sex Puppets e Oliver Twisted.
Preparado para um joguinho?
Em 1996, o futebol profissional retornou a Baltimore, depois de treze
anos de ausência. Um concurso foi estabelecido para escolher o nome da nova franquia,
em homenagem ao mais famoso residente da cidade. Ravens (“corvos”) venceu de
goleada Marauders e Americans. Em agosto de 1998, após dois anos sem um
mascote, o Baltimore Ravens revelou não apenas um, mas três mascotes. Numa
elaborada e estranha cerimônia em campo, antes de um jogo contra os Eagles de
Filadélfia, cada um dos “corvos” foi “descascado” de um ovo enorme. São eles,
em ordem de “nascimento”: Edgar, “um corvo alto, forte e competitivo, com penas
longas e flutuantes e olhos aguçados e espertos”, Alan, um pássaro “pequeno,
magro e ágil”, e Poe, “o gorducho e preguiçoso, mas inegavelmente adorável”.
Até agora nenhum dos três parece ter desenvolvido o devastador problema com a
bebida, que foi a característica mais marcante de Poe.
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