Um garoto resiste ao sofrimento de uma infância miserável e sem
alegrias, trabalhando em uma fábrica lúgubre que exala o odor da acumulada
futilidade da vida de todos os que ali estiveram antes dele. Isso soa como o
preâmbulo de um dos romances de Charles Dickens – e é –, mas também poderia ser
o primeiro parágrafo da sua própria biografia. Em certa época, a vida de
Dickens foi tão “dickensoniana” quanto a de Oliver Twist. E então... bem, então
ele ficou famosos e não precisou mais se preocupar em trabalhar em fábricas.
A usina de futilidades preferida de Dickens era a fábrica de graxa para
botas de Warren, onde foi mandado para trabalhar depois que o seu pai, John,
foi preso por causa de dívidas em 1824. A tarefa do jovem Charles era colar
etiquetas nos frascos de graxa de sapatos, o que não parece tão ruim assim até
que você imagine alguém fazendo isso durante dez a doze horas por dia, ganhando
seis shillings por semana. Então se torna um verdadeiro inferno, que o faz
desejar escrever sobre o sofrimento de pobres crianças trabalhando em fábricas
pelo resto da vida, e foi exatamente isso que Dickens fez.
Ele ficou famosos com incrível facilidade. Publicado quando Dickens
tinha apenas vinte e quatro anos, As
Aventuras do Sr. Pickwick tornou-se um dos livros mais vendidos na história
da literatura inglesa, lançando o seu jovem autor a uma celebridade mundial
quase do dia para a noite. Longe estavam os dias de graxa de sapatos e prisões
por dívidas. Agora Dickens vivia em um mundo onde as pessoas faziam filas para
comprar os mais recentes fascículos das suas longas e serializadas novelas.
Em Nova York, seis mil pessoas se aglomeraram num cais do porto para
guardar a chegada dos capítulos finais de The
Old Curiosity Shop, em 1841. “A pequena Nell vai morrer?”, as pessoas
gritavam aos marinheiros do navio que se aproximava, ansiosas para saber qual
seria o destino da jovem e destemida heroína. (Sim, ela morre, lembrando o
sarcasmo de Oscar Wilde quando afirmou que “É preciso ter um coração de pedra
para ler sobre a morte da pequena Nell... sem rir”.)
Dickens foi o Stephen King da sua época – detestado pela crítica (e por
esnobes espirituosos como Wilde), mas reverenciado por legiões de fãs
apaixonados. “Não acreditamos na permanência da sua reputação”, o Saturday
Review declarou em 1858. “Nossos filhos irão se perguntar o que poderíamos ter
em mente ao alçar Dickens ao topo dos romancistas da sua época.” Vá dizer isso
a Tolstói, Dostoiévski, Henry James e muitos outros que consideravam Dickens o
melhor escritor inglês desde Shakespeare. Ou vá dizer aos seus associados nos
negócios, que se beneficiaram enormemente da sua excepcional sagacidade em
marketing.
A idéia de publicar romances em fascículos foi exclusivamente dele, bem
como os vários esquemas de publicar e republicar suas obras em muitas e
diferentes “edições especiais”, que acabaram transformando Dickens em um homem
rico. Até mesmo o tamanho de seus romances redundou em benefícios financeiros.
Dickens publicava seus livros em forma de folhetins e era pago por fascículo.
Quanto maior o número de fascículos, mais coroas de ouro eram depositadas no
bolso do astuto escritor.
Embora quase de maneira sobrenatural, seus romances e contos tenham
permanecido consistentemente excelentes no decorrer de mais trinta anos, a
verdade é que Dickens teve alguns altos e baixos. Em 1836 ele se casou com
Catherine Hogarth, a respeitável filha de um editor de jornal, mas tinha um
relacionamento estranhamente íntimo com as duas irmãs mais novas da esposa.
Quando Mary Hogarth morreu em 1837, aos dezessete anos, Dickens reagiu
como se a própria esposa tivesse falecido. Ele cortou uma mecha dos cabelos de
Mary e a guardava em um estojo especial. Retirou o anel do dedo da garota e
usou-o em seu próprio dedo pelo resto da vida. Manteve consigo todas as roupas.
Dickens até professou o desejo de ser enterrado no mesmo túmulo que a cunhada:
ele seria assombrado por visões de seu fantasma durante anos. Ninguém sabe o
que aconteceu entre eles, se é que alguma coisa aconteceu, mas Catherine e seus
dez filhos não devem ter ficado felizes com tal situação.
Mais problemas os aguardavam. Dickens separou-se da esposa em 1858. Ele
acabara de ser “fisgado” por Ellen Ternan, uma atriz de dezoito anos, vinte e
sete anos mais nova do que ele. Dickens pagava todas as despesas dela e é
provável que tenha tido um filho com ela, que o acompanhava em viagens usando
nomes falsos para evitar o escândalo.
Quando retornavam da França, em 1865, o trem em que viajavam caiu de uma
ponte entre Dover e Londres. Aterrorizado com a idéia de ser visto entre os
destroços com a sua inamorata,
Dickens fugiu da cena do acidente levando o manuscrito de Dombey and Son debaixo do braço. Ele jamais se recuperou
completamente dos ferimentos sofridos no acidente, e o esforço físico exigido
pelas muitas viagens para promover seus livros também começou a cobrar seu
preço. Dickens sofreu um derrame e morreu no dia 9 de junho de 1870, exatamente
cinco anos depois do acidente de trem. Foi sepultado – contra seus desejos – no
Poet’s Corner da Abadia de Westminster.
Transtorno-obsessivo-compulsivo
(TOC)
Bob Cratchit talvez tivesse de trabalhar em condições desoladoras e
sufocantes, mas não o seu criador. Dickens era um “arrumador” compulsivo que se
recusava a escrever em qualquer cômodo em que as mesas e cadeiras não
estivessem organizadas da maneira certa. Ele possuía uma excepcional capacidade
de se lembrar da exata localização de cada peça de mobília em qualquer cômodo
que fosse, e poderia passar horas reorganizando tudo para se adequar aos seus
caprichos. Quando era hóspede em uma residência, ou em algum hotel de luxo, sua
primeira providência era arrumar tudo em seu quarto de acordo com o seu próprio
plano interior.
Não é de surpreender que Dickens fosse também um maníaco por ordem. Ele
escovava os escassos cabelos centenas de vezes por dia, e até mesmo extraía um
pente do bolso durante um jantar, se pressentisse que um único fio tivesse
saído do lugar. Quando amigos saíam de uma sala, ele invariavelmente arrumava a
desordem que haviam deixado e ficava furioso se outras pessoas demonstrassem o
menor sinal de desleixo.
Numa visita ao Capitólio, nos Estados Unidos, em 1842, ele ficou
estarrecido com o comportamento desmazelado dos representantes eleitos da nação,
especialmente com a incapacidade que demonstravam de acertar as cuspideiras com
suas expectorações de tabaco mascado. “Eu recomendo firmemente a todos os
estrangeiros que não olhem para o chão”, Dickens resmungou. “E, se por acaso
derrubarem alguma coisa... não a apanhem de maneira alguma, a não ser que
estejam usando luvas”.
Campos magnéticos
Ainda mais esquisitas que as manias por ordem de Dickens eram as suas
superstições. Ele tocava tudo três vezes para dar sorte, considerava a
sexta-feira o seu “dia de sorte” e sempre saía de Londres no dia em que o
último fascículos dos seus romances era publicado. Porém, o mais curioso de
tudo eram os seus hábitos para dormir – ele insistia em dormir com a cabeça virada
para o Polo Norte. “Ele afirmava que não conseguiria dormir se a cabeça
estivesse em qualquer outra posição”, um amigo revelou. Quando lhe pediam para
explicar o motivo dessa preferência, Dickens respondia com uma bobagem qualquer
sobre “as correntes terrestres de eletricidade positiva e negativa”. Ele
acreditava a que o alinhamento dos campos magnéticos do planeta ajudava a
promover a criatividade.
Hipnotize-me
Quando não estava extasiando os leitores com seus romances de oitocentas
páginas, Dickens hipnotizada as pessoas com o Mesmerismo. Desenvolvido por um
maluco alemão chamado Franz Anton Mesmer, o Mesmerismo era a “ciência” de
utilizar os raios curativos do “magnetismo animal” para curar doenças. Foi a
coqueluche do momento na Europa continental, na segunda metade do século XIX.
Na época de Dickens, a teoria já havia cruzado o Canal da Inglaterra,
onde ele começou a aprender seus princípios por intermédio do respeitado médico
britânico John Elliotson, um dos primeiros a adotar o estetoscópios e que, mais
tarde, foi expulso da profissão médica por heresia hipnótica. Dickens ficou tão
bem hipnotizado por essa pseudociência que passou a praticá-la por conta
própria. Hipnotizava pessoas em festas, por diversão, ou ajudava amigos a
superar pequenas enfermidades. Diz-se até mesmo que ele produziu um milagre.
Em 1844, pegou o caso de uma certa Madame de la Rue, que era afligida
por ataques agudos de ansiedade que faziam seu rosto todo se contorcer. Após umas
poucas semanas de tratamento, Dickens a deixou relaxada, dormindo profundamente
e “funcionando” normalmente. Ele continuou com as sessões por algum tempo
depois disso, tentando chegar à raiz da ansiedade da senhora por meio da
interpretação de sonhos (outro hobby de Dickens).
E quando o seu amigo John Leech sofreu uma contusão, em 1849, ele usou o
poder do Mesmerismo para curá-lo em apenas poucos dias. Ao que parece, a única
doença que o Mesmerismo era incapaz de curar era aquela que mais afligia
Dickens: a asma. Então, ele encontrou o alívio para isso à maneira antiga:
ingerindo ópio.
Dê o fora, Hans
Hans Christian Andersen teve um contato direto com o lado mal-humorado
de Dickens durante uma desastrada visita que fez á casa do romancista, em 1857.
Os dois haviam se conhecido dez anos antes, quando um excitado Dickens irrompeu
numa sessão de autógrafos do escritor de contos de fadas dinamarquês, em
Londres, gritando: “Eu preciso ver Andersen!”. Logo os dois se tornaram amigos.
Quando Andersen se preparava para retornar à Dinamarca, Dickens o presenteou
com uma edição autografada das suas obras completas. Parecia uma amizade
escrita nas estrelas.
Durante dez anos, Andersen acalentou o projeto de voltar para a
Inglaterra e passar um tempo com o caro amigo. Quando o fez, contudo, encontrou
uma pessoa muito diferente. Dickens se tornara um homem frio e amargo, à beira
da separação da sua esposa e prestes a ir morar com a amante, Ellen Ternan. A
visita de um excêntrico dinamarquês que mal conseguia falar inglês era a última
coisa de que ele precisava. Porém, quando Andersen se convidou para uma estadia
de duas semanas, Dickens não pôde recusar. A imposição deixou o já dispéptico
romancista com um humor ainda mais desagradável. “Hans Christian Andersen
talvez esteja conosco”, ele escreveu num convite a um amigo, “mas não se
incomode com ele – principalmente porque ele não conhece qualquer outro idioma
exceto o seu próprio dinamarquês, e suspeita-se que desconheça até mesmo este”.
Andersen soube que estava encrencado no momento e que chegou. Dickens
simplesmente desaparecera, tendo saído ás pressas para Londres a fim de cuidar
de um assunto particular. Deixou o hóspede aos cuidados dos seus irritantes e
desrespeitosos filhos, que zombavam do dinamarquês pelas suas costas, se
recusavam a atender as suas necessidades e falavam mal dos seus romances na
frente dele. Até mesmo o pequeno Edward, de apenas cinco anos, participou da
bagunça, ameaçando jogar os adorados filhos do escritor pela janela. Andersen
foi reduzido a atirar-se no gramado, soluçando incontrolavelmente.
Eles podem tê-lo esgotado, mas nem assim Andersen foi embora. Cinco
semanas depois ainda estava por lá. “Estamos sofrendo um bocado por causa de
Andersen”, escreveu Dickens, que havia retornado e logo ansiava por se ver
livre de seu velho “amigo”. Quando o indesejado hóspede finalmente partiu, a
família Dickens ficou aliviada. “Ele era uma pessoa maçante e ficou por tempo demais”,
a filha Kate observou. O próprio Charles deixou uma nota maldosa no quarto onde
Andersen ficara: “Hans Andersen dormiu neste quarto durante cinco semanas”,
dizia o bilhete, “que parecem séculos à nossa família”. Ele nunca mais foi
convidado.
Penetra mórbido
“Sou impelido ao necrotério por forças invisíveis”, Dickens certa vez
admitiu. Tratava-se do Necrotério de Paris, para ser exato, onde a exposição
pública de cadáveres não-identificados ocorreu por todo o transcorrer do século
XIX. Dickens tinha uma estranha fascinação pelo lugar. Era capaz de ir até por
lá por dias seguidos, obcecado com os cadáveres de andarilhos afogados e outros
infelizmente abandonados. Ele chamava de “atração pela repulsa” o sentimento
que o invadia nesses momentos. Também era compelido a visitar as cenas de
crimes famosos e a aprofundar-se nos detalhes de crimes sensacionalistas com
uma curiosidade mórbida, digna de seu contemporâneo Edgar Allan Poe.
Espie na minha estante
Se você visitar a casa de Dickens em Gad’s Hill Place, em Kent, prepare-se
para uma sessão de voyerismo. O travesseiro escritor tinha uma porta secreta
instalada em seu estúdio. Destinada a parecer uma estante de livros, ela contém
prateleiras falsas com as lombadas de livros fictícios cujos títulos foram
criados pelo próprio Dickens – provavelmente numa tarde em que havia exagerado
no conhaque. Certifique-se de conferir os três volumes do Five Minutes in China, os nove volumes do Cat’s Lives, bem como as preciosidades em trocadilhos, tais como Noah’s Arkitecture e The Gunpowder Magazine. O lado
pervertido de Dickens é revelado por Wisdom
of Our Ancestors, um conjunto de vários volumes que encobre fascículo sobre
doenças e torturas, e também seu volume complementar, The Virtues of Our Ancestors, cuja lombada é tão estreita que o
título foi impresso lateralmente.
Onde estou?
Onde está localizada a única estátua de Dickens de que se tem
conhecimento? Por estranho que pareça, a resposta é: Filadélfia. Dickens
detestava monumentos a tal ponto que, em seu testamento, proibiu que uma
estátua sua fosse erigida. Assim mesmo, alguns dos seus admiradores lhe fizeram
uma estátua. Quando a família de Dickens a rejeitou, eles encontraram um lar
para ela no Clark Park na City of Brotherly Love. A escultura de bronze em
tamanho natural retrata o autor brincando com Nell, a adorada heroína do
romance The Old Curiosity Shop.
A conexão Dickens-Bonaduce
Dickens é o tata-tata-tataravô do ator Brian Foster, que fez o papel de
Chris Partridge na série de televisão A Família Do-Ré-Mi, de 1971 a 1974.
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