quinta-feira, 18 de junho de 2015

A vida secreta de Charles Dickens

Um garoto resiste ao sofrimento de uma infância miserável e sem alegrias, trabalhando em uma fábrica lúgubre que exala o odor da acumulada futilidade da vida de todos os que ali estiveram antes dele. Isso soa como o preâmbulo de um dos romances de Charles Dickens – e é –, mas também poderia ser o primeiro parágrafo da sua própria biografia. Em certa época, a vida de Dickens foi tão “dickensoniana” quanto a de Oliver Twist. E então... bem, então ele ficou famosos e não precisou mais se preocupar em trabalhar em fábricas.
A usina de futilidades preferida de Dickens era a fábrica de graxa para botas de Warren, onde foi mandado para trabalhar depois que o seu pai, John, foi preso por causa de dívidas em 1824. A tarefa do jovem Charles era colar etiquetas nos frascos de graxa de sapatos, o que não parece tão ruim assim até que você imagine alguém fazendo isso durante dez a doze horas por dia, ganhando seis shillings por semana. Então se torna um verdadeiro inferno, que o faz desejar escrever sobre o sofrimento de pobres crianças trabalhando em fábricas pelo resto da vida, e foi exatamente isso que Dickens fez.
Ele ficou famosos com incrível facilidade. Publicado quando Dickens tinha apenas vinte e quatro anos, As Aventuras do Sr. Pickwick tornou-se um dos livros mais vendidos na história da literatura inglesa, lançando o seu jovem autor a uma celebridade mundial quase do dia para a noite. Longe estavam os dias de graxa de sapatos e prisões por dívidas. Agora Dickens vivia em um mundo onde as pessoas faziam filas para comprar os mais recentes fascículos das suas longas e serializadas novelas.
Em Nova York, seis mil pessoas se aglomeraram num cais do porto para guardar a chegada dos capítulos finais de The Old Curiosity Shop, em 1841. “A pequena Nell vai morrer?”, as pessoas gritavam aos marinheiros do navio que se aproximava, ansiosas para saber qual seria o destino da jovem e destemida heroína. (Sim, ela morre, lembrando o sarcasmo de Oscar Wilde quando afirmou que “É preciso ter um coração de pedra para ler sobre a morte da pequena Nell... sem rir”.)
Dickens foi o Stephen King da sua época – detestado pela crítica (e por esnobes espirituosos como Wilde), mas reverenciado por legiões de fãs apaixonados. “Não acreditamos na permanência da sua reputação”, o Saturday Review declarou em 1858. “Nossos filhos irão se perguntar o que poderíamos ter em mente ao alçar Dickens ao topo dos romancistas da sua época.” Vá dizer isso a Tolstói, Dostoiévski, Henry James e muitos outros que consideravam Dickens o melhor escritor inglês desde Shakespeare. Ou vá dizer aos seus associados nos negócios, que se beneficiaram enormemente da sua excepcional sagacidade em marketing.

A idéia de publicar romances em fascículos foi exclusivamente dele, bem como os vários esquemas de publicar e republicar suas obras em muitas e diferentes “edições especiais”, que acabaram transformando Dickens em um homem rico. Até mesmo o tamanho de seus romances redundou em benefícios financeiros. Dickens publicava seus livros em forma de folhetins e era pago por fascículo. Quanto maior o número de fascículos, mais coroas de ouro eram depositadas no bolso do astuto escritor.
Embora quase de maneira sobrenatural, seus romances e contos tenham permanecido consistentemente excelentes no decorrer de mais trinta anos, a verdade é que Dickens teve alguns altos e baixos. Em 1836 ele se casou com Catherine Hogarth, a respeitável filha de um editor de jornal, mas tinha um relacionamento estranhamente íntimo com as duas irmãs mais novas da esposa.
Quando Mary Hogarth morreu em 1837, aos dezessete anos, Dickens reagiu como se a própria esposa tivesse falecido. Ele cortou uma mecha dos cabelos de Mary e a guardava em um estojo especial. Retirou o anel do dedo da garota e usou-o em seu próprio dedo pelo resto da vida. Manteve consigo todas as roupas. Dickens até professou o desejo de ser enterrado no mesmo túmulo que a cunhada: ele seria assombrado por visões de seu fantasma durante anos. Ninguém sabe o que aconteceu entre eles, se é que alguma coisa aconteceu, mas Catherine e seus dez filhos não devem ter ficado felizes com tal situação.
Mais problemas os aguardavam. Dickens separou-se da esposa em 1858. Ele acabara de ser “fisgado” por Ellen Ternan, uma atriz de dezoito anos, vinte e sete anos mais nova do que ele. Dickens pagava todas as despesas dela e é provável que tenha tido um filho com ela, que o acompanhava em viagens usando nomes falsos para evitar o escândalo.
Quando retornavam da França, em 1865, o trem em que viajavam caiu de uma ponte entre Dover e Londres. Aterrorizado com a idéia de ser visto entre os destroços com a sua inamorata, Dickens fugiu da cena do acidente levando o manuscrito de Dombey and Son debaixo do braço. Ele jamais se recuperou completamente dos ferimentos sofridos no acidente, e o esforço físico exigido pelas muitas viagens para promover seus livros também começou a cobrar seu preço. Dickens sofreu um derrame e morreu no dia 9 de junho de 1870, exatamente cinco anos depois do acidente de trem. Foi sepultado – contra seus desejos – no Poet’s Corner da Abadia de Westminster.
Transtorno-obsessivo-compulsivo (TOC)
Bob Cratchit talvez tivesse de trabalhar em condições desoladoras e sufocantes, mas não o seu criador. Dickens era um “arrumador” compulsivo que se recusava a escrever em qualquer cômodo em que as mesas e cadeiras não estivessem organizadas da maneira certa. Ele possuía uma excepcional capacidade de se lembrar da exata localização de cada peça de mobília em qualquer cômodo que fosse, e poderia passar horas reorganizando tudo para se adequar aos seus caprichos. Quando era hóspede em uma residência, ou em algum hotel de luxo, sua primeira providência era arrumar tudo em seu quarto de acordo com o seu próprio plano interior.
Não é de surpreender que Dickens fosse também um maníaco por ordem. Ele escovava os escassos cabelos centenas de vezes por dia, e até mesmo extraía um pente do bolso durante um jantar, se pressentisse que um único fio tivesse saído do lugar. Quando amigos saíam de uma sala, ele invariavelmente arrumava a desordem que haviam deixado e ficava furioso se outras pessoas demonstrassem o menor sinal de desleixo.
Numa visita ao Capitólio, nos Estados Unidos, em 1842, ele ficou estarrecido com o comportamento desmazelado dos representantes eleitos da nação, especialmente com a incapacidade que demonstravam de acertar as cuspideiras com suas expectorações de tabaco mascado. “Eu recomendo firmemente a todos os estrangeiros que não olhem para o chão”, Dickens resmungou. “E, se por acaso derrubarem alguma coisa... não a apanhem de maneira alguma, a não ser que estejam usando luvas”.
Campos magnéticos
Ainda mais esquisitas que as manias por ordem de Dickens eram as suas superstições. Ele tocava tudo três vezes para dar sorte, considerava a sexta-feira o seu “dia de sorte” e sempre saía de Londres no dia em que o último fascículos dos seus romances era publicado. Porém, o mais curioso de tudo eram os seus hábitos para dormir – ele insistia em dormir com a cabeça virada para o Polo Norte. “Ele afirmava que não conseguiria dormir se a cabeça estivesse em qualquer outra posição”, um amigo revelou. Quando lhe pediam para explicar o motivo dessa preferência, Dickens respondia com uma bobagem qualquer sobre “as correntes terrestres de eletricidade positiva e negativa”. Ele acreditava a que o alinhamento dos campos magnéticos do planeta ajudava a promover a criatividade.
Hipnotize-me
Quando não estava extasiando os leitores com seus romances de oitocentas páginas, Dickens hipnotizada as pessoas com o Mesmerismo. Desenvolvido por um maluco alemão chamado Franz Anton Mesmer, o Mesmerismo era a “ciência” de utilizar os raios curativos do “magnetismo animal” para curar doenças. Foi a coqueluche do momento na Europa continental, na segunda metade do século XIX.
Na época de Dickens, a teoria já havia cruzado o Canal da Inglaterra, onde ele começou a aprender seus princípios por intermédio do respeitado médico britânico John Elliotson, um dos primeiros a adotar o estetoscópios e que, mais tarde, foi expulso da profissão médica por heresia hipnótica. Dickens ficou tão bem hipnotizado por essa pseudociência que passou a praticá-la por conta própria. Hipnotizava pessoas em festas, por diversão, ou ajudava amigos a superar pequenas enfermidades. Diz-se até mesmo que ele produziu um milagre.
Em 1844, pegou o caso de uma certa Madame de la Rue, que era afligida por ataques agudos de ansiedade que faziam seu rosto todo se contorcer. Após umas poucas semanas de tratamento, Dickens a deixou relaxada, dormindo profundamente e “funcionando” normalmente. Ele continuou com as sessões por algum tempo depois disso, tentando chegar à raiz da ansiedade da senhora por meio da interpretação de sonhos (outro hobby de Dickens).
E quando o seu amigo John Leech sofreu uma contusão, em 1849, ele usou o poder do Mesmerismo para curá-lo em apenas poucos dias. Ao que parece, a única doença que o Mesmerismo era incapaz de curar era aquela que mais afligia Dickens: a asma. Então, ele encontrou o alívio para isso à maneira antiga: ingerindo ópio.
Dê o fora, Hans
Hans Christian Andersen teve um contato direto com o lado mal-humorado de Dickens durante uma desastrada visita que fez á casa do romancista, em 1857. Os dois haviam se conhecido dez anos antes, quando um excitado Dickens irrompeu numa sessão de autógrafos do escritor de contos de fadas dinamarquês, em Londres, gritando: “Eu preciso ver Andersen!”. Logo os dois se tornaram amigos. Quando Andersen se preparava para retornar à Dinamarca, Dickens o presenteou com uma edição autografada das suas obras completas. Parecia uma amizade escrita nas estrelas.
Durante dez anos, Andersen acalentou o projeto de voltar para a Inglaterra e passar um tempo com o caro amigo. Quando o fez, contudo, encontrou uma pessoa muito diferente. Dickens se tornara um homem frio e amargo, à beira da separação da sua esposa e prestes a ir morar com a amante, Ellen Ternan. A visita de um excêntrico dinamarquês que mal conseguia falar inglês era a última coisa de que ele precisava. Porém, quando Andersen se convidou para uma estadia de duas semanas, Dickens não pôde recusar. A imposição deixou o já dispéptico romancista com um humor ainda mais desagradável. “Hans Christian Andersen talvez esteja conosco”, ele escreveu num convite a um amigo, “mas não se incomode com ele – principalmente porque ele não conhece qualquer outro idioma exceto o seu próprio dinamarquês, e suspeita-se que desconheça até mesmo este”.
Andersen soube que estava encrencado no momento e que chegou. Dickens simplesmente desaparecera, tendo saído ás pressas para Londres a fim de cuidar de um assunto particular. Deixou o hóspede aos cuidados dos seus irritantes e desrespeitosos filhos, que zombavam do dinamarquês pelas suas costas, se recusavam a atender as suas necessidades e falavam mal dos seus romances na frente dele. Até mesmo o pequeno Edward, de apenas cinco anos, participou da bagunça, ameaçando jogar os adorados filhos do escritor pela janela. Andersen foi reduzido a atirar-se no gramado, soluçando incontrolavelmente.
Eles podem tê-lo esgotado, mas nem assim Andersen foi embora. Cinco semanas depois ainda estava por lá. “Estamos sofrendo um bocado por causa de Andersen”, escreveu Dickens, que havia retornado e logo ansiava por se ver livre de seu velho “amigo”. Quando o indesejado hóspede finalmente partiu, a família Dickens ficou aliviada. “Ele era uma pessoa maçante e ficou por tempo demais”, a filha Kate observou. O próprio Charles deixou uma nota maldosa no quarto onde Andersen ficara: “Hans Andersen dormiu neste quarto durante cinco semanas”, dizia o bilhete, “que parecem séculos à nossa família”. Ele nunca mais foi convidado.
Penetra mórbido
“Sou impelido ao necrotério por forças invisíveis”, Dickens certa vez admitiu. Tratava-se do Necrotério de Paris, para ser exato, onde a exposição pública de cadáveres não-identificados ocorreu por todo o transcorrer do século XIX. Dickens tinha uma estranha fascinação pelo lugar. Era capaz de ir até por lá por dias seguidos, obcecado com os cadáveres de andarilhos afogados e outros infelizmente abandonados. Ele chamava de “atração pela repulsa” o sentimento que o invadia nesses momentos. Também era compelido a visitar as cenas de crimes famosos e a aprofundar-se nos detalhes de crimes sensacionalistas com uma curiosidade mórbida, digna de seu contemporâneo Edgar Allan Poe.
Espie na minha estante
Se você visitar a casa de Dickens em Gad’s Hill Place, em Kent, prepare-se para uma sessão de voyerismo. O travesseiro escritor tinha uma porta secreta instalada em seu estúdio. Destinada a parecer uma estante de livros, ela contém prateleiras falsas com as lombadas de livros fictícios cujos títulos foram criados pelo próprio Dickens – provavelmente numa tarde em que havia exagerado no conhaque. Certifique-se de conferir os três volumes do Five Minutes in China, os nove volumes do Cat’s Lives, bem como as preciosidades em trocadilhos, tais como Noah’s Arkitecture e The Gunpowder Magazine. O lado pervertido de Dickens é revelado por Wisdom of Our Ancestors, um conjunto de vários volumes que encobre fascículo sobre doenças e torturas, e também seu volume complementar, The Virtues of Our Ancestors, cuja lombada é tão estreita que o título foi impresso lateralmente.
Onde estou?
Onde está localizada a única estátua de Dickens de que se tem conhecimento? Por estranho que pareça, a resposta é: Filadélfia. Dickens detestava monumentos a tal ponto que, em seu testamento, proibiu que uma estátua sua fosse erigida. Assim mesmo, alguns dos seus admiradores lhe fizeram uma estátua. Quando a família de Dickens a rejeitou, eles encontraram um lar para ela no Clark Park na City of Brotherly Love. A escultura de bronze em tamanho natural retrata o autor brincando com Nell, a adorada heroína do romance The Old Curiosity Shop.
A conexão Dickens-Bonaduce
Dickens é o tata-tata-tataravô do ator Brian Foster, que fez o papel de Chris Partridge na série de televisão A Família Do-Ré-Mi, de 1971 a 1974.

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