segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A vida secreta de Henry David Thoreau

Muito antes de os judeus dissidentes da ex-União Soviética popularizarem o termo, Henry David Thoreau foi o primeiro refusenik (do verbo To refuse = recusar) do mundo. Ele estava sempre recusando uma coisa ou outra. A saber:
Ele se recusou a pagar a taxa de cinco dólares para receber o diploma de mestrado em Artes, na Universidade de Harvard. “Não vale cinco dólares”, resmungou. “Deixem que cada ovelha fique com a sua própria pele”.
Ele se recusou a administrar castigos físicos às crianças que estavam aos seus cuidados na Concord Academy. A direção da escola o despediu por insubordinação, o que lhe custou uma das poucas oportunidades promissoras de carreira da sua vida.
É célebre a sua recusa em pagar o imposto de votação de um dólar, em 1847, em protesto contra o envolvimento dos Estados Unidos na guerra mexicana. Essa ofensa o levou para a cadeia, onde, conta a lenda, ele repeliu seu patrono Ralph Waldo Emerson, que foi pagar a fiança para tirá-lo de lá. “Henry, por que você está aqui?”, Emerson, segundo relatos, indagou. “Waldo, por que você não está aqui?”, foi a réplica de Thoreau. Na manhã seguinte, Henry também já não estava mais na prisão. Sua tia pagou o imposto, e ele saiu da cela bem a tempo de pagar a festa huckleberry daquela tarde.
Thoreau recusou até mesmo o seu nome. Nascido David Henry Thoreau, ele insistia para que todos o chamassem de Henry David. Sim, ele era um opositor tão delicado quanto a tradição de opositores da literatura norte-americana jamais produzira. Bartleby, o Escrevente, nada tinha que ver com David Henry – ops, desculpe – Henry David.

Thoreau poderia ser tudo, menos inconsistente. Ele se ateve ao seu plano de vida, por mais peculiar que fosse até mesmo no excêntrico meio da Concord, Massachusetts, no século XIX. Entre as suas paixões pessoais estavam valer-se por si mesmo, comungar e digressivos relatos das suas experiências. Os amigos o consideravam uma pessoa estranha, mas cativante.
Ralph Waldo Emerson praticamente o sustentou durante toda a sua vida adulta. Thoreau serviu como guarda-costas da esposa e dos filhos de Emerson, como faz-tudo, e como uma espécie de “guia de diversões”, levando crianças em expedições nas  florestas, onde lhes ensinava sobre a fauna e a flora locais e sobre o canto dos pássaros. Quando estava realmente desesperado por dinheiro, voltava a trabalhar na próspera fábrica de lápis do pai.
Os livros de Thoreau venderam desoladoramente pouco em seu tempo de vida, porém a lenda local cresceu depois da sua morte por tuberculose, aos 44 anos. Com a possível exceção de “Moby Dick”, de Herman Mellvile, “Walden”, de Thoreau, é o mais reverenciado livro que ninguém realmente chagou a ler. Por outro lado, o seu grande ensaio “A Desobediência Civil” foi bastante lido, e por algumas pessoas bem importantes. Gandhi, Leon Tolstói e Martin Luther King Jr. citaram a obra como fonte de inspiração.
A vida de Thoreau teve vários altos e baixos. Ele nunca se casou, embora tivesse tentado arduamente arrumar uma esposa. Seu adorado irmão John morreu de tétano em 1841. Em abril de 1844, Thoreau e um amigo destruíram acidentalmente mais de trezentos acres de florestas em Concord, quando a fogueira que acenderam em um acampamento espalhou-se para fora de controle. Um péssimo conselho financeiro de Emerson atirou Thoreau em um espiral de dívidas da qual ele levou anos para se recuperar, o que danificou seriamente a amizade entre os dois.

Ainda assim, Thoreau teve a vida que queria. Estava satisfeito em não ser o “líder dos engenheiros norte-americano”, que Emerson insistia para que ele fosse, preferindo, em vez disso, reinar como o “capitão das festas huckleberry”. É por essa teimosa determinação de ser o que era que Thoreau continua sendo admirado até os dias de hoje.
Batalha de manteiga
A desobediência civil parecia estar no sangue da família Thoreau. O seu avô, Asa Dunbar, foi o líder da “Grande Rebelião da Manteiga” na Universidade de Harvard, em 1766. Irritado com a qualidade da comida servida nos refeitórios da universidade, Dunbar fez o que qualquer estudante que se respeitasse faria: organizou uma revolta de alunos. “Vejam, a nossa manteiga cheira mal!”, ele esbravejava. “Não podemos nos alimentar disso. Deem-nos, portanto, manteiga que não tenha mau-cheiro!”.
Ora, é claro que a direção da Universidade não seguiu a lógica inexorável de Dunbar. Citando-o com “o pecado da insubordinação”, suspenderam metade dos alunos como castigo. A “Rebelião da Manteiga”, por mais grandiosa que tenha sido, fracassou completamente. No entanto, pavimentou o caminho para futuros protestos contra a comida em Harvard, incluindo a “Rebelião do Pão com Manteiga” de 1805 e a “Rebelião do Repolho” em 1807.
Henry, o feio
De acordo com todas as indicações, Thoreau era bastante charmoso. Mas seus encantos nada tinham que ver com a boa aparência ou com a higiene pessoal. O dom-juan de Concord, na verdade, exibia uma figura decididamente desairosa. Seu vizinho Nathaniel Hawthorne o descreveu como sendo “feio como o pecado, narigudo, a boca torta, e com modos incultos e rústicos, embora corteses, correspondendo perfeitamente com tal exterior”. De fato, Thoreau raramente tomava banho ou se dava ao trabalho de pentear os cabelos desalinhados ou de trocar as roupas esfarrapadas.
Também era famoso pelas péssimas maneiras à mesa – Oliver Wendell Holmes queixava-se frequentemente de seu hábito de comer com as mãos. Ainda assim, as pessoas pareciam dispostas a passar por cima dessas deficiências. “Sua feiúra é um tipo honesto e agradável e o torna muito melhor do que a beleza”, Hawthorne concluiu. Louisa May Alcott, que tinha uma “paixonite” por Thoreau, escreveu: “Sob os defeitos, o olho do Mestre viu as linhas grandiosas que iriam servir de modelo para o homem perfeito”.
Um “cogumelo” para chamar de seu
Só porque Thoreau era um livre-pensador pelos padrões de seu tempo, não significa que não fosse um tanto puritano. Certo dia, no outono de 1856, enquanto caminhava pela floresta, ficou mortificado ao encontrar um grande cogumelo com o formato de um pênis humano. “Poderia ser dividido em três partes: píleo, haste e base – ou escroto –, pois é um falo perfeito”, ele escreveu em seu diário. “Em todos os aspectos, é um objeto extremamente revoltante e, no entanto, bastante sugestivo... Foi tão ofensivo aos olhos quanto ao olfato, o píleo dissolvendo-se rapidamente e contaminando tudo o que tocava com uma substância fétida, olivácea e semilíquida. Em uma ou duas horas a planta espalhou seu cheiro por toda a casa, onde quer que fosse colocada, de forma que não poderia ser suportada. Tive receio de dormir em meus aposentos onde ela havia sido deixada até que este estivesse muito bem ventilado. Tinha o odor de rato morto... Céus, o que a Natureza estava pensando quando fez algo assim? Ela quase se rebaixou ao nível daqueles que são atraídos pelas partes pudendas”.
Encalhes nos fundos
No que se referia à venda de livros, bem, digamos apenas que Thoreau não era nenhum J.K. Rowling. Atualmente considerada um clássico menor, a sua obra de ruptura “A Week On The Concord And Merrimack Rivers” vendeu tão pouco que as crianças costumavam ir até a casa dele para dar uma espiada no “estranho homem... que escrevera um livro do qual nenhum volume havia sido vendido”.
Isso era um exagero, mas nem tanto. Na verdade, o editor de Thoreau lhe escreveu perguntando o que deveria fazer com todas as cópias não vendidas que se empilhavam em seu escritório. Thoreau pegou todos os 706 volumes encalhados, guardou-os em seu sótão e tentava vendê-los a qualquer um que passasse por sua casa. “Agora possuo uma biblioteca de quase novecentos volumes”, confessou em um determinado momento, “sendo que mais de setecentos, dentre estes, eu mesmo escrevi.”
Pão “passado”
Se você gosta de pão de uvas passas, deve agradecer a Thoreau. Ele inventou a receita durante uma fase em que assava pães na sua propriedade no lago Walden. Diz-se que as senhoras de Concord ficaram admiradas com essa sua inovação culinária.
Lapiseiro
Guarnecer massa de pão com uvas passas era brincadeira de criança, comparado com as inovações de Thoreau no campo de fabricação de lápis. A “lapiseira” – se é que existe tal palavra – estava no sangue de Thoreau. Charles Dunbar, seu tio, havia fundado a fábrica da família em 1821, depois de deparar com uma jazida de plumbagida, ou grafite, em Bristol, New Hampshire.
O pai de Thoreau, John, logo se uniu à firma e revolucionou de tal forma a manufatura de lápis que a Sociedade Agrícola de Massachusetts o agraciou com uma citação especial. Desde a juventude Henry David Thoreau afirmava que ele também deixaria a sua marca no mundo dos lápis. Finalmente teve a sua chance em 1838.
Dedicando-se aos lápis em tempo integral, ele logo desenvolveu uma fórmula aperfeiçoada de chumbo, cuja qualidade se igualava àquela fabricada na Alemanha. Um novo moinho para o grafite foi outra das revolucionárias invenções do jovem Thoreau. Se ao menos ele tivesse se dado ao trabalho de patentear essas idéias, poderia ter se tornado um homem rico.
Repousando em seus louros, Thoreau jurou que nunca mais faria um lápis. “Por que deveria?”, ele disse a amigos. “Não farei novamente o que já fiz uma vez”. Porém, como um sedutor canto de sereia, a manufatura de lápis o atraiu de volta; afogado em dívidas, ele retornou com renovado vigor em 1843. Ficou completamente absorvido pelo seu trabalho, a até admitiu a Ralph Waldo Emerson que havia sonhado com máquinas de lápis a noite inteira.
O trabalho árduo valeu a pena, pois Thoreau desenvolveu o que as empresas de publicidade anunciaram como “um novo e superior lápis de desenho, expressamente para artista e connaisseurs”. Esse lápis era mais rígido, mais escuro e mais durável do que qualquer outro existente no mercado. Em pouco tempo os professores de Arte de Boston insistiam para que os alunos não usassem nenhum outro lápis que não fosse o de Thoreau. Somente a crescente concorrência, em parte incitada pelas inovações de manufatura do próprio Thoreau, impediu que a família dominasse a indústria de lápis nos Estados Unidos.
Henry David, o vermelho?
Em 1954, no auge da “Ameaça Vermelha”, os gentis individualistas de Concord se transformaram em um improvável alvo da histeria anticomunista. O Serviço de Informações dos Estados Unidos ordenou que todas as cópias de “Walden” fossem removidas das embaixadas norte-americanas no mundo inteiro. O livro, proclamavam, era “positivamente socialista”.
Nome aos bichos
Thoreau considerava-se um naturalista acima de tudo. Portanto, provavelmente ficaria encantado ao saber que existe um inseto que recebeu o seu nome. O entomologista A. A. Girault denominou uma espécie de vespa como Thoreauia em homenagem a ele.

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