sábado, 15 de agosto de 2015

Os Grandes Mestres da AMOAL – Georges Simenon (3)


No século 20, a Sabedoria Devassa teve como “qutub” (“mestre perfeito” ou “pilar”) o escritor Georges Simenon, considerado por André Gide como “o maior de todos, o mais autêntico romancista da França contemporânea”. Nascido em 1903, em Liège, na Bélgica, Simenon foi um dos maiores fenômenos literários de todos os tempos.

Sua capacidade de escrever uma novela em uma ou duas semanas – exatamente em onze dias, segundo ele, – datilografando um capítulo por dia numa média de 92 palavras por minuto, rendeu-lhe a espantosa produção de aproximadamente 420 volumes durante meio século de trabalho. Cerca de 200 destes foram escritos com o único objetivo de ganhar dinheiro e publicados sob vários pseudônimos. O restante, mais de 150 romances e 50 contos (sendo 84 “casos” do inspetor Maigret) são thrillers psicológicos, pequenas novelas de não mais de duzentas páginas, conhecidas pelos leitores europeus como “simenons”.

Mas quem foi Simenon? Quem foi esse homem capaz de escrever tanto e tão rapidamente novelas excelentes, a ponto de a crítica reabilitá-lo no seu centenário de nascimento, acariciando-o depois de tê-lo desdenhado por longo tempo por achá-lo um escritor menor, comercial? Quem foi esse homem que produziu romances psicológicos tão densos e profundamente humanos, a ponto de ser comparado a Balzac, Dostoievski e Dickens?

A resposta é difícil. A primeira dificuldade está no excesso que caracteriza o homem que nasceu na Bélgica, foi repórter de jornal provinciano, mudou para Paris com menos de vinte anos, viajou pela Europa e pela África, esteve nas ilhas Galápagos, na Polinésia e na Turquia, e morou nos Estados Unidos e na Suíça.

A segunda dificuldade em dizer se Simenon é um grande artista está na sua popularidade. Desde sempre, seus livros venderam às toneladas. Só os 25 volumes de suas obras (quase) completas venderam mais de 1,5 milhão de exemplares, sem contar as edições avulsas e de bolso. Mundialmente, ele é o sétimo autor mais lido – ganha até de Agatha Christie – tendo vendido mais de 1 bilhão de exemplares. Ao contrário de artistas da escrita, o estilo de Simenon não perde quase nada na tradução. Sua fluidez e vocabulário são facilmente adaptáveis a outros idiomas.

Seus livros deram origem a 56 filmes, feitos entre 1932 e 1998, que se confundem com a história do cinema francês. Adaptações de sua obra foram dirigidas por Jean Renoir, Marcel Carné e Claude Chabrol e interpretadas por Jean Gabin, Pierre Renoir e Brigitte Bardot. Histórias de crime, policiais e detetives, esses filmes tiveram sempre boa bilheteria. A extrema comunicabilidade da obra de Simenon tem pouco a ver com a noção de grande arte. Pense-se em Proust e Céline, para ficar na França.

A terceira e última dificuldade em se considerar Simenon um romancista sublime está na personalidade do autor, que foi tão excessivo na vida quanto na obra. “Ele era prolixo em tudo: na sua maneira de falar, de escrever, de publicar, de fazer amor”, disse Denyse, sua secretária e amante antes de ser sua segunda mulher, com quem teve três filhos. “Nós fazíamos amor todos os dias, três vezes por dia, antes do café da manhã, depois da sesta e antes de dormir”.

Depois de poucos anos de casamento com Denyse, Simenon adotou a bigamia, tornando-se amante de sua cozinheira, mas sem abandonar a mulher nem as relações com prostitutas, fãs, jornalistas, arrumadeiras de hotel, garçonetes e qualquer rabo-de-saia que lhe passasse pela frente. Velho, jactou-se de ter feito amor com mais de dez mil mulheres.

Aos vinte anos, Simenon registrou que seu objetivo era “ganhar o máximo de dinheiro possível escrevendo livros fáceis, e depois fazer literatura”. Com menos de trinta anos, estava rico, mas continuou a escrever para ganhar dinheiro, que gastava a rodo. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, assinou um contrato milionário, nunca igualado na França: 250 mil euros para cada livro; 15% dos direitos autorais nos primeiros dez mil exemplares vendidos, e, a partir daí, 20%; mais a totalidade dos direitos de publicações no exterior e adaptações cinematográficas.

Simenon não era um intelectual. Abandonou a escola quando tinha dezesseis anos. Menino, parece ter lido os romancistas do século 19: Balzac e Dumas, Dickens e Stevenson, Gogol e Dostoievski. Depois, teria lido Proust e Conrad. E nada dos clássicos, de crítica e história literária, de teoria, de filosofia ou de estética. Jamais ligou para isso, como nunca se interessou por política.

Já a política se interessou por ele: um de seus biógrafos, Pierre Assouline, diz que ele era um “populista conservador” que escreveu artigos anti-semitas no começo dos anos 20, teve um irmão que foi condenado à morte por ter colaborado com os nazistas durante a Ocupação e passou dez anos nos Estados Unidos no pós-guerra por medo de ser processado na França. Os romances sérios e as memórias de Georges Simenon fascinam os críticos. Ele é e será lembrado, contudo, por ter criado o inspetor Jules Maigret, personagem de 84 de seus romances.

O primeiro deles, Pietr le Letton, foi publicado em 1931, quando Simenon tinha 27 anos. O último, Maigret et Monsieur Charles, saiu em 1972, quando o escritor ia completar 70 anos. Nesses quarenta anos, o inspetor Maigret continuou a ser um cinqüentão pacato, modesto, apegado à rotina, que anseia por estar em seu apartamento na hora do jantar, que sua mulher mesmo prepara.

Nessas quatro décadas, houve o fascismo, o stalinismo, a Segunda Guerra Mundial, a Ocupação, Vichy, a Resistência, a Libertação, o gaullismo, a Guerra na Argélia, o Maio de 68, inovações científicas e tecnológicas, a mudança no mundo – e Maigret continuou indo cotidianamente ao número 36 do Quai des Orfèvres, sede da Polícia Judiciária, dar expediente como comissário-chefe, e dela sair para percorrer Paris e a França profunda, medíocre como ele.

Maigret é um detetive singular. Não é particularmente arguto nem dispõe de grandes poderes dedutivos ou intuitivos. É um homem um tanto anódino, até medíocre. Mas ele entende a lama humana, os desejos torpes, os passos em falso de gente comum que, em condições nenhum pouco especiais, pode cometer um assassinato. Maigret não tem idéias nem se interessa pelas alheias. Ele presta atenção aos detalhes, ao que as pessoas fazem.

O crítico Pierre Marcabru diz que Maigret tem dois vícios: o cachimbo e a curiosidade: “Essa curiosidade o faz entrar nos motivos dos outros. Sobretudo nos dos pobres-diabos. Ele se coloca no lugar deles sem tentar compreendê-los e, menos ainda, explicá-los. Ele os aceita. Daí vem a sua simpatia atenciosa pelos criminosos de ocasião, pelas lastimáveis vítimas da fatalidade. Não é sem melancolia que eles os manda para o cadafalso. O mundo é triste, feio, malfeito, desencorajante”.

O mundo criado por Simenon, o mundo mecânico e medíocre que impregna a trama mesmo dos romances de Maigret é uma forma de arte. Uma arte aborrecida, cuja trama se esquece dias depois de fechar o livro, mas cujo tom cinzento e frio parece ser o da vida que se levou e, em parte, ainda se leva na França pequeno-burguesa de hoje. Mas para se conhecer a história desse autêntico espada-matador existem pelo menos dois livros fundamentais: O homem que não era Maigret, de Patrick Marnham, e O mistério de Georges Simenon, de Fenton Bresler, um advogado inglês e correspondente do “Daily Mail”, em Londres.

No seu livro, Bresler promove uma devassa na vida de Simenon, apresentando-o ao público como um homem neurótico, compulsivo e maníaco por escrever e fazer sexo. Quanto a esta última atividade, o autor não prova documentalmente, como no caso da superprodução literária, as dez mil mulheres que Simenon alega haver “conhecido” (8 mil delas prostitutas). Simenon, no entanto, declara ter ultrapassado tal marca com a mesma certeza de quem vendeu milhões de livros no mundo todo e não vendo absurdo algum em tal façanha sexual: “É um número normal, quase banal”, diz ele.

As pessoas que conviveram com Simenon descrevem-no como um ser autoritário, antipático e difícil de suportar. Seus relacionamentos e uniões conjugais seriam, geralmente, apenas transações físicas, desprovidas de qualquer sentimento e terminavam ou em divórcios ruidosos ou em separações rancorosas. Sua primeira mulher, Règine, detestava sexo e o casamento ruim de vinte anos finalmente terminou quando ele conheceu Denyse, que era sexualmente voraz. Esse casamento também faliu e Denyse acabou sendo internada em uma clínica, de onde nunca mais saiu – foi lá que escreveu um livro de memórias sobre seu casamento.

Fenton Bresler conta, ainda, que os dois filhos de Simenon teriam abandonado a casa paterna tão logo puderam por ser impossível qualquer tipo de convivência e que sua única filha, Marie-Jo, cometeu suicídio em 1978, quando tinha apenas 25 anos, por ter mantido com ele uma relação incestuosa.

Esses fatos não parecem ter ocorrido com o Georges Simenon que passou os últimos anos de sua vida encapsulado num refúgio tranqüilo na Suíça, tendo por companhia a antiga empregada Teresa, que esteve com ele até sua morte. Tampouco faz jus à imaginação popular que o vê como um modelo para o famoso Maigret.

Mas o autor não pretende deixar dúvidas a respeito: a única semelhança entre o Simenon e Maigret é o desempenho, a competência. De resto, Maigret, com sua bondade, senso de justiça, simpatia intuitiva pelos seres humanos e fidelidade a uma mulher é o homem que Simenon jamais teria sido.

Quando começava a escrever um livro, era como se entrasse em transe mediúnico. Não admitia interrupções. Essa escrita obsessiva explica talvez um dos supremos prazeres de Simenon, a sensação que temos, quando o lemos, de que o tempo parou, um ideal místico que as artes de quando em quando satisfazem. Em toda a obra de Simenon a justiça é feita. Esse, o seu tema, inteiramente realizado, é que é um esteio contra o pessimismo incruado da literatura moderna.

Curiosamente, Simenon precisava de sexo pelo menos três vezes ao dia, se não passava mal. Gostava de atacar por trás as mulheres. Não se conhece caso de resistência. Sua penúltima mulher, Denyse, numa memória de 1978, “O Gato e o Passarinho”, diz que ele escrevia horas e vinha sobre ela, que tirava a calcinha e ficava de quatro. Era enrabada por quase meia hora.

Quando enchia-se dele, sexualmente, ela o levava a bordéis. Se o papo com as prostitutas estava bom, quando Simenon terminava, Denyse sugeria que tomasse outra mulher, o que o marido fazia na mesma hora.

O escritor teve muitos casos. O mais famoso foi Josephine Baker, a negra americana que abafou no musical em Paris nos anos 20 e 30. Simenon deixa claro em sua biografia de muitos volumes (chatíssima, sua única obra ilegível) que só não se casou com Josephine porque tinha medo de ser chamado de Mr. Josephine Baker. E deixa também claro que era o “traseiro cantante” (sic) da mulher que mais o atraía.

Quando alugou uma casa grande em Lausanne, uma das empregadas perguntou ao mordomo: “On passe toutes à la casserole?”, ou seja, “vamos todas ser passadas na vara?”. A resposta foi “sim”. Cama a três e a quatro foram freqüentes nos três casamentos de Simenon, que, não custa nada repetir, dizia ter comido mais de dez mil mulheres...

Quando o romance parecia esgotado na totalidade psicológica de Proust e na exploração completa da linguagem de Joyce, Simenon ressuscitou sozinho a narrativa, onde eventos e pessoas são vistas num relance de extrema nitidez, que nos satisfazem perfeitamente como seres humanos e nos provêm o prazer ancestral, pré-histórico, de uma história contada à tribo em volta de uma fogueira. Não é pouca porcaria.
Georges Simenon morreu em Lausanne, França, em 5 de setembro de 1989 e suas cinzas estão espalhadas ao pé de uma árvore que ele amava, em frente à casa cor-de-rosa, na avenida Figuiers, onde morava.

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