terça-feira, 25 de agosto de 2015

Nosso amor de ontem: Carlos Zéfiro


Há 23 anos, em 1992, morria o homem responsável por iluminar o imaginário libidinoso do contido e conservador Brasil das décadas de 50 a 70. Um artista de desenhos toscos e sem muita técnica que durante anos a fio foi tachado de pornográfico, e manteve-se na clandestinidade até os setenta anos, quando sua identidade foi finalmente revelada.

Ironicamente, estava destinado a jamais colher os frutos de seu trabalho: menos de um ano depois, desgarrava-se deste mundo, provavelmente para continuar suas historinhas sacanas em outras bandas.

Diante dos olhos da sociedade, ele era apenas um pacato funcionário do Departamento Nacional de Imigração, de nome Alcides Caminha.

O que ninguém sabia era que, nas horas vagas, o autodidata que só completou o curso ginasial aos 58 anos de idade também rabiscava – o termo é esse mesmo – histórias em quadrinhos em que apresentava homens e mulheres (e também alguns animais) nas mais diversas situações, onde tudo convergia para o mesmo ponto: o sexo.

A idéia de criar as revistinhas de sacanagem, também conhecidas por “catecismos” (por serem escondidas dentro de publicações religiosas), surgiu quando um colega lhe apareceu com duas revistinhas italianas e, sabendo do talento do amigo para o desenho, lhe pediu que ampliasse os desenhos.


Alcides tomou gosto pela coisa, e a partir daí, passou a criar as próprias histórias, utilizando-se diversas vezes do artifício de copiar desenhos e posições de outras revistas e fotonovelas eróticas.

Temendo perder o emprego – e, depois de aposentado, sua humilde pensão – caso se envolvesse em escândalos (em função da antiga Lei n.º 7.967, que regia o funcionalismo público), Alcides adotou o nome fictício de Carlos Zéfiro, e passou a produzir inúmeras historinhas na clandestinidade.

Os catecismos eram vendidos clandestinamente em locais como barbearias e bancas de jornal e dali contrabandeados para os colégios.

O formato fino das revistinhas facilitava a ocultação, sendo escondido em livros, cadernos e principalmente em outras revistas que eram compradas exclusivamente com este propósito, para a felicidade dos jornaleiros que sempre lucravam em dobro.

As histórias de Carlos Zéfiro, na maioria das vezes, apresentavam mulheres e homens gostosos, fogosos e viris. De vez em quando aparecia um jumento aqui, um corcunda ali, mas estes eram exceção à regra.

Curiosamente, sua historinha mais vendida, a hilária aventura de João Cavalo, trazia como protagonista um nordestino atarracado e feioso que, digamos, possuía um dote peculiar que compensava sua falta de beleza e justificava tal denominação.


As revistinhas de Carlos Zéfiro eram um sucesso entre os adolescentes cheio de espinhas e tesão, encontrando público também entre os homens de outras faixas etárias.

E coitado de quem desse mole de ser flagrado portando uma dessas obscenidades por aí: consideradas como uma total imoralidade pelas tradicionais famílias católicas da época, os catecismos também sofriam a fúria impiedosa das feministas, que se consideravam reduzidas à condição de reles putas em suas histórias.

Com todo esse arsenal moral apontado para sua cabeça, Alcides achou melhor manter sua identidade em segredo, mesmo depois de ter interrompido seus trabalhos em 1968, temendo a perseguição do regime militar, além de enfrentar a dura concorrência das famosas revistinhas dinamarquesas e suecas, que traziam fotonovelas de sacanagem em cores, com closes de genitálias que eram páreo duro para sua humilde “sacanarte” nativa.


De fato, vendido de modo clandestino, produzido de forma artesanal, desenhado com técnicas bisonhas e relatando histórias que tinham (e ainda têm) um enorme apelo erótico, os livrinhos de Zéfiro faziam a ponte perfeita entre as conversas na roda de amigos e aquilo que se suspeitava que ocorria nas alcovas.

Quer dizer: os livros de sacanagem apresentavam um pouco essa possibilidade de ter o sexo e a sexualidade como algo destacado e individualizado, alguma coisa que poderia ser vista quando se desejava e que era guardada numa gaveta e não na igreja, prostíbulo ou quarto de dormir como era o caso do sexo da vida real.

Neste sentido, é também claro que parte do sucesso desta literatura estava precisamente no seu desenho igualmente ambíguo que, aliado a uma reprodução gráfica deficiente, criava uma impressão estranha, exótica.

Uma impressão, enfim, de desfamiliarização que era precisamente o máximo que esse gênero de narrativa poderia esperar.

A rigor, a única diferença entre uma história de Zéfiro e uma fotonovela é que na dele os personagens consumam aquilo que apenas passa pela cabeça dos protagonistas das fotonovelas. Zéfiro, no mínimo, é menos hipócrita.

As feministas, não sem-razão, poderão objetar que quase todas as suas histórias são narradas do ponto de vista masculino e nelas a mulher não passa de um objeto de prazer.


Vamos por parte. Para início de conversa, Zéfiro é um homem. Seria pior se tivesse optado por uma falsa identidade feminina – como, digamos, Pauline Réage – para perturbar senhoras e senhoritas, algumas até bem sabidinhas, como Susan Sontag, condescendente com as reminiscências sadomasoquistas de Mademoiselle O.

Como vocês já sabem, o famoso livro Histoire d’O narra a estória de uma fotógrafa de moda que tem, como amante, René, e que sente uma profunda satisfação em ser seqüestrada, humilhada e torturada por seu amante.

Apesar de seu editor, Jean Paulhan, atribuir sua autoria a Pauline Réage, o crítico literário Alexandrian, que com ele conviveu, à época, acredita ter sido Paulhan o responsável pela concepção da obra, não o seu redator, escrevendo-a, por assim dizer, por procuração.

Quanto à reificação sexual, nos quadrinho de Zéfiro homens e mulheres são iguais perante Eros. Mesmo quando o ponto de partida é uma chantagem e a mulher desponta como vítima, a chantageada acaba extraindo os seus dividendos.

Afinal, gozar tem mão dupla e, por convenção do gênero, nenhuma das partes envolvidas é de se jogar fora.


Ao contrário: se nas fotonovelas o mocinho costuma ser um Adônis e a mocinha uma ninfa, nas love stories sem-vergonha de Zéfiro, o herói, além de bonitão, é sexualmente bem-dotado, e a heroína, além de bela, possui um corpo escultural, com destaque especial para a fixação nacional número um: bundas.

Corolário: vilão não é quem mata ou agride, mas quem não tem competência sexual. Tanatos sifu.

Os vilões de Zéfiro não apelam para a violência, apenas brocham. Os que fornicam, experimentam de tudo: barba, cabelo, bigode, sobrancelha e costeleta.

Essa ausência de estilo pode causar, à primeira vista, a impressão de que Zéfiro não seria o alter ego de apenas um artista anônimo, mas sim um pseudônimo coletivo adotado por uma equipe heterogênea.

Muitos quadrinhófilos insistiram nessa teoria, alegando que seria impossível que os desenhos contidos em duas revistas distintas atribuídas a Zéfiro fossem obra da mesma mão.

Na verdade, essa discrepância se fazia presente mesmo em desenhos de uma mesma revista. A explicação é muito simples.

Zéfiro era realmente o mesmo autor em todos os trabalhos que levaram sua marca ou o seu estilo narrativo. Apenas as fontes de onde os desenhos haviam sido copiados é que eram bem distintas.


Praticamente todos os desenhos de Zéfiro foram chupados de algum lugar, seja de fotonovelas, das próprias fotos pornográficas que teria mandado fazer, de revistas em quadrinhos da linha erótico-mexicana da Ediex, ou até mesmo de outras revistas de sacanagem.

A utilização do papel vegetal era feita não só para economizar os fotolitos, como também para facilitar as cópias dos desenhos.

Nesse ambiente onde a repressão era tão bem-feita e articulada que conseguia até fazer de conta que o objeto reprimido não existia, não havia o menor espaço para a crueza de Carlos Zéfiro.

Os ardores e os desmaios das heroínas de M. Delly eram apenas isso: ardores e desmaios. Nas fotonovelas água-com-açúcar, o que havia por trás dos beijos inocentes era simplesmente inimaginável. Mesmo para imaginar é preciso saber o que imaginar.

E a ignorância das menininhas católicas apostólicas romanas dos anos 50 era abismal: por trás da água-com-açúcar, é claro que a imaginação voava... mas era atrás de mais água e mais açúcar.

Nesse mundo suave, tão cheio de desmaios e ardores inexplicáveis, Carlos Zéfiro não existiu.

A não ser para as meninas garimpeiras que descobriam insuspeitados tesouros debaixo dos colchões dos irmãos.

E que tiveram assim a sorte de descobrir também que: a) o sexo existe! b) além de existir, é grande! c) além de existir e ser grande, é bom demais! E uma coisa é certa, em qualquer arte, ciência, ou na vida, depois de algumas descobertas, não há mais quem possa segurar o vôo.


Da perplexidade causada, na meninice, pelas revelações de Carlos Zéfiro, até a chegada de 68, com o seu clássico slogan “é proibido proibir”, algumas menininhas foram em frente.

Terá tido Carlos Zéfiro algum papel nisso ou não? Possivelmente sim. E positivo.

Pois o fato é que hoje, depois desses anos 60, onde a prática mais livre da sexualidade foi redescoberta como parte fundamental de qualquer vida humana, é curioso rever essas revistinhas e perceber como, na prática, Carlos Zéfiro foi um autêntico precursor do feminismo, no que o feminismo tem de bom.

Pois não é que, já nos anos 50, o desenhista não se acanhava de mostrar que as mulheres têm prazer, sabem tomar iniciativa, salvo raras exceções, o moralismo passa longe dessas histórias, e, de um jeito ou de outro, a mulher sempre reveste de paixão o ato sexual.

O certo é que depois dele, o quadrinho erótico nacional nunca mais seria o mesmo. Zéfiro trouxe o conteúdo que faltava aos catecismos.

Seu texto era interessante, rico em detalhes e, sobretudo, realmente excitante.

Se, com os outros autores você descabelava o palhaço alegremente, com Zéfiro o circo armado pegava fogo. Era orgasmo garantido ou seu dinheiro de volta.

O maior trunfo de Zéfiro era saber criar um enredo com a cara do Brasil.


Nas suas histórias não faltavam as fantasias e situações típicas do brasileiro, como o sujeito que transa com a mãe e a filha ao mesmo tempo, o que casa e depois traça a cunhada, o caminhoneiro que transa na boléia, o patrão que carca a empregada, farras homéricas em puteiros, o caipira ingênuo que traça a universitária classuda, homem com homem, mulher com mulher, surubas e, principalmente, muitos cornos alegres e saudáveis pra todo mundo se divertir.

Tudo descaradamente brega, mas muito gostoso e desencanado.

O mais interessante era ver essas diatribes eróticas distribuídas num festival de posições sexuais capaz de aposentar o Kama Sutra. E naturalmente em suas HQs nunca faltava aquele que, na época, já era a preferência nacional: o sexo anal.

Olhando hoje, depois da liberdade sexual vivenciada nas últimas décadas, Zéfiro pode parecer água-com-açúcar, mas não é.

Nos anos 60, em plena ditadura militar, Zéfiro desafiava a repressão espalhando clandestinamente pelo território brasileiro suas revistinhas deliciosamente explícitas tais quais minas eróticas, prontas para explodir o moralismo verde-oliva da ditadura militar.

Era um verdadeiro guerrilheiro erótico invisível, chutando o balde do conservadorismo e fazendo o brasileiro gozar de norte a sul do país. Zéfiro retratava um sexo livre e sem culpa e era quase um herói nacional da rapaziada.

E ao mesmo tempo completamente desconhecido.

Ninguém sabia quem ele era, onde morava, de onde vinha. Um mistério total. Uma lenda viva semelhante ao Fantasma-que-anda dos pigmeus Bandar.


Como desenhista, Zéfiro não era exatamente o que poderíamos chamar de refinado. Suas figuras humanas eram todas decalcadas na cara dura de fotografias eróticas ou de personagens de quadrinhos “normais” que Zéfiro despia, modificava os rostos e adaptava para seus gibis.

Seu completo anonimato o permitia fazer qualquer trambicagem para montar sua história. Zéfiro seria um perfeito picareta se não tivesse um texto brilhante e conseguisse transformar aqueles “trechos” de outras obras em uma nova e original obra.

Antes mesmo de inventarem o “sampler”, Zéfiro já sampleava a torto e a direito. Muitas vezes ele usava a mesma cena em vários catecismos diferentes.

Bastava mudar a cor do cabelo da mulher ou pôr um bigode no homem e pronto, já era outro casal numa outra história!


Apesar das gambiarras e da anatomia capenga, no entanto, seus desenhos possuíam um charme particular.

De tanto não ter estilo, acabou adquirindo um “anti-estilo” próprio e marcante. Tão marcante que virou escola, fazendo surgir inúmeros clones que passaram a copiá-lo. Sua genialidade o fez passar rapidamente de copiador para copiado. Era o sampler do sampler, vejam só!

Houve até quem tentasse se fazer passar por ele, mas isso só servia para aumentar ainda mais as dúvidas sobre sua verdadeira identidade.

Zéfiro era tão mítico que chegou a virar sinônimo de seu produto. O leitor ia na banca e não pedia um catecismo, pedia um “Zéfiro”.


Zéfiro produziu mais de 800 catecismos entre o final dos anos 1950 e início dos 1970. Na década de 1980, já com o fim da censura, seus trabalhos antigos continuaram a ser reimpressos por diversas editoras. Livros, artigos e até teses de mestrado foram escritos a seu respeito, porém nunca mais aparecerem novos trabalhos dele.

Teria Zéfiro morrido? A resposta só chegaria em novembro de 1991.

Em uma antológica matéria para a revista Playboy, o professor e especialista em HQ Moacy Cirne, depois de muitas investigações, revelava finalmente ao Brasil a identidade secreta do mitológico desenhista: seu nome era Alcides Caminha.

Um ilustre desconhecido? Nem tanto. Como se não bastasse ser o homem que registrou de forma brilhante e criativa a sexualidade do povo brasileiro por três décadas, Caminha também era um compositor de mão cheia.

Foi parceiro de Nélson Cavaquinho em canções como “Notícia” (1954), gravada pelo sambista Roberto Silva, “Capital do Samba” (1956) e “A Flor e o Espinho” (1956), gravada por Elizeth Cardoso, que tem o mais belo apelo poético da MPB: “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.

Boêmio convicto, este carioca dividiu parte de sua vida com os amigos músicos e com muitas mulheres. Amava tanto o sexo que se tornou um dos seus mais originais e inventivos cronistas.

Funcionário público, produziu sua obra erótica sem o conhecimento dos colegas do trabalho até se aposentar, e por mais de trinta anos escondeu-se da mídia, temendo ser demitido ou perder a minguada aposentadoria caso fosse “descoberto”.


Caminha chegou a receber um troféu HQ Mix pela importância de sua obra, entregue pelo cartunista Ota, editor da revista MAD, mas por uma ironia do destino faleceu exatamente no dia seguinte à entrega do prêmio, em julho de 1992, aos 70 anos de idade.

A importância de Zéfiro é tão grande para a cultura brasileira, que ele já virou capa do CD “Barulhinho Bom”, da cantora Marisa Monte, já foi enredo de escola de samba e virou point cultural no Rio de Janeiro.

Agora você pode matar as saudades ou travar contato inicial com sua obra por meio das reimpressões de seus catecismos que o sebo carioca A Cena Muda está colocando à venda pelo seu site.

Também vale muito a pena procurar por três livros que registraram e analisaram a obra zefiriana com muita competência: O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro, de Otacílio D’Assunção Barros, editora Record, e A Arte Sacana de Carlos Zéfiro e Os Alunos Sacanas de Carlos Zéfiro, ambos de Joaquim Marinho, pela editora Marco Zero.

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