Mais tarde, no século 19, um espanhol chamado Don Juan Tenorio deu uma nova roupagem para a Sabedoria Devassa, com a introdução dos graus de evolução internos, os rituais sagrados e o nome pelo qual a organização ficou conhecida até hoje: Antiga e Mística Ordem dos Abatedores de Lebre (AMOAL).
Amante da boa mesa, da boa cama e do bom vinho, Don Juan era um conquistador incansável, irresistível e incorrigível. Aquele que vestiu como nenhum outro o adjetivo “mulherengo” e que não pôde pertencer a nenhuma delas porque era de todas.
Ousado, apaixonado e muito safado, volúvel e fiel – fiel ao amor em si mesmo, como uma Afrodite masculina –, mais que um personagem, quase um mito, assim era Don Juan. Ele foi um daqueles personagens que já existiam no imaginário popular antes de ganhar forma literária. Suas histórias eram conhecidas na Europa desde o século 16.
A lenda diz que Don Juan seduzira, estuprara ou matara uma jovem moça de família nobre da Espanha, e também assassinara seu pai, que duelara pela honra da filha. Depois, tendo encontrado num cemitério uma estátua deste, jocosamente a convidara para um jantar, convite este aceito alegremente pela estátua.
Na hora do banquete, o fantasma do pai ali se fez presente, como precursor da morte de Don Juan. Lá pelas tantas, a estátua pediu para apertar-lhe a mão e, quando Don Juan lhe estendeu o braço, foi por ela arrastado para o inferno.
O primeiro a pôr as aventuras de Don Juan no papel foi um frade. Isso mesmo. O religioso espanhol Tirso de Molina, autor da peça O conquistador de Sevilha e o convidado de pedra, foi o primeiro a contar as peripécias desse “highlander” moderno. As datas para esta publicação, entretanto, variam, em torno de 1620 até 1635, dependendo da fonte – embora haja registros de que seja conhecida na Espanha desde 1615.
Segundo esta peça, Don Juan é um mulherengo inveterado, que seduzia as mulheres disfarçando-se de seus amantes ou lhes prometendo o matrimônio. Atrás de si deixa um rastro de corações partidos, até que finalmente acaba matando um certo Don Gonzalo. Quando, muitos anos depois, é convidado pelo fantasma deste para um jantar numa catedral, acaba por aceitar, por não querer parecer um covarde.
As visões acerca da lenda variam de acordo com as opiniões sobre o caráter de Don Juan, apresentado dentro de duas perspectivas básicas. De acordo com uns, era um mulherengo barato, concupiscente, cruel e sedutor, que buscava apenas a conquista e o sexo. Outros, porém, pretendem que ele efetivamente amava as mulheres que conquistava, e que era verdadeiramente capaz de admirar a beleza interior de uma mulher.
Don Juan, na verdade, era um personagem mutante no quesito amor. Seu amor é digno. É real. Mas é beeeeeem flexível. Ele não acredita em fidelidade. Não acredita em Deus. Não tem escrúpulos. Não sente culpa. Do ponto-de-vista romântico, ele não ama, se apaixona. E sua paixão dura menos do que um beijo.
Seu deleite é a arte da conquista – o resto é a ação! – essa mesma que você está pensando, gafanhoto. Segundo seu próprio ponto-de-vista, ele ama de verdade, e é isso que o alimenta.
Depois da estréia em O conquistador, Don Juan, mesmo sob diferentes nomes, apareceu em mais de uma dezenas de peças. Quem lhe deu a versão definitiva foi o escritor espanhol romântico José Zorrilla, que escreveu a peça Don Juan Tenorio, em 1844.
A história se inicia com Don Juan Tenorio e seu amigo Don Luís Mejía discutindo qual dos dois é o maior conquistador de Sevilha. Pela quantidade de lebres abatidas, Don Juan deixa Don Luís no chinelo e este, então, lança-lhe o desafio de conquistar uma donzela inocente, pura e besta.
Don Juan resolve seduzir Dona Inês, filha de Don Gonzalo e noiva de Don Luís, moça casta e devota, recatada ao extremo, daquelas que nem se permitem encarar um homem nos olhos. E ele consegue, depois de raptá-la de um convento.
Só que, por um acidente de percurso, Don Juan encontra em Inês o verdadeiro amor e, de repente, precisa se deparar com a vingança do noivo e de seus familiares. Exímio espadachim, Don Juan acaba por matar Don Luís e Don Gonzalo e foge para a Itália. Cinco anos depois, quando retorna a Sevilha, encontra no cemitério a tumba de sua amada.
A história termina com uma disputa entre as almas de Dona Inês e a do seu pai pela alma de Don Juan: enquanto este tenta levá-lo para o inferno, aquela consegue trazê-lo para o céu.
Don Juan é rival à altura de Dom Quixote, o perseguidor de moinhos de vento, criado por Cervantes. Cunhou significados populares, vestiu personagens, alimentou livros, filmes, quadros e, claro, paixões. Algumas vezes ardeu no inferno, como no livro do frade Tirso de Molina. Em outras, foi vilão arrependido, como o imaginou José Zorrilla. Aos poucos, a pena literária depenou-o de escrúpulos e consciência, e traçou um retrato de mulherengo esfaimado, egoísta, vaidoso e amoral.
O dramaturgo francês Molière criou Don Juan ou o Convidado de Pedra, peça sardônica estreada em 1665. E, em 1736, Carlo Goldoni escreve Juan Tenorio ou o Libertino Castigado. O rol continuou: Dumas, Pushkin, Edmond de Rostand, Lord Byron, Baudelaire, Apollinaire, Tennessee Williams, Peter Handke, todos escreveram sobre Don Juan. E há Mozart, claro, com a sua ópera Don Giovanni, criada em 1787.
Sem esquecer Hollywood, que o retratou de gibão puxado, bigodinho aparado, beijo sempre pronto. Um herói que subvertia a moral sexual, desafiava os poderes, raptava donzelas. Don Juan tem tantas vidas como os gatos malteses da sua cidade.
Para os sevilhanos, o verdadeiro Don Juan chamou-se Miguel de Manaças. Diz a lenda que este sonhou com o seu próprio funeral e, chocado, despertou para a caridade. A ajuda aos pobres, prestou-a com a fundação do Hospital de La Caridad, em pleno século 17.
Ali perto, num pátio empedrado onde o ruído urbano embate no fresco silêncio de casas brancas de moldura ocre, fica também o lar de Dona Inês – uma freira enamorada do galanteador, pois que mulheres crentes e perdidas, todas tombavam por ele. E, à volta, há as muitas igrejas, as esquinas sombreadas, os bancos de pedra para trocar bilhetes pecaminosos.
A Sevilha de hoje ainda ama este sedutor? Claro. Basta lembrar que no dia 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, celebra-se na cidade o Dia de Don Juan – os estudantes disfarçam-se de libertinos e às donzelas é “permitido” ouvir serenatas nas varandas.
Na Plaza de los Refinadores, inclementemente aberta ao sol, a estátua de Don Juan fita o horizonte. Segura a espada e estende uma mão, o peito insuflado, o porte garboso, de corpo inteiro. De perto, os lábios desenhados na pedra são os de um verdadeiro símbolo sexual.
Longe dali, esconde-se a Iglesia de San Luis de los Franceses, toda em pedra e ecos góticos, nave central ladeada por figuras severas e mártires vigilantes. Sentada, sossegadamente, em bancos corridos de madeira, está uma pequena multidão à espera da peça Don Juan Tenorio.
Texto de Zorrilla, encenação de Ramón Bocanegra, a produção do Teatro Clássico de Sevilla apresenta a incrível história do sedutor que abandona conquistas e sacanagens com espadachins da mesma laia, quando cai de amores por Inês, donzela guardada em convento.
A tragédia abate-se, com o galanteador tendo que matar o pai da virgem, que morrerá de amor e de abandono. Anos depois, Don Juan encontrará estes fantasmas e arrepender-se-á, ajoelhado perante Deus. Para trás, fica o vaidoso que proclamava: “Da princesa à filha de pescador, o meu amor percorreu toda a escala social.” Entre cenas, a abóbada pintada refulge. É curioso que, numa Espanha fortemente católica, o templo ceda ao fascínio por um libertino.
Alinhadas entre o público, cinco mulheres seguem este D. Juan (interpretado por Moncho Sánchez-Diezma). No fim, não negam palmas sentidas. Vieram juntas, de propósito, e de longe, para ver Don Juan que, confessam, sempre lhes habitou o imaginário. “Tem uma coisa dentro dele que nos estremece”, suspira Francisca, 66 anos, dona de casa. “Don Juan representa a coragem para conseguir o que se quer”, afirma a sexagenária aposentada Dolores.
Maria José, tímida, acrescenta: “A mim, agrada-me muito o seu arrependimento.” A seu lado, está a psicóloga Mercedes, 27 anos: “Don Juan é um personagem que muda por amor. Na Espanha é o símbolo masculino. É claro que, quando era mais jovencita me atraía este homem. Mas, literariamente, não é muito interessante. É uma leitura muito católica de um herói moral: ele descobre Deus e é redimido...”
A leitura que Douglas Carlton Abrams faz desse mesmo “herói” é diferente. No seu primeiro romance, O Diário Perdido de D. Juan, o norte-americano brinca com a hipotética veracidade da figura, a partir de um manuscrito redigido em Sevilha, em 1593, durante a Época de Ouro espanhola: reinava Filipe II, o Grande Inquisidor inspirava medos, a cidade espanhola era porta de entrada do ouro e prata das Américas. Um período em que, diz Abrams, “a população sevilhana tinha 30% de mulheres solteiras, por causa da guerra ou da colonização”.
O escritor baseou-se nas muitas lendas disponíveis, mas também no ensaio do erudito Louis Viardot (autor do século 19) que defendia ser Don Juan um nobre sevilhano, morto no Convento de São Francisco, onde tentava regenerar-se.
A escrita é impulsionada pela ação, o herói fala na primeira pessoa, há uma vontade de enunciação de um catecismo amoroso. Temos, quase, um novo Don Juan, desta vez com espírito new age. “Deus disse para nos multiplicarmos, e ele não esperou que o fizéssemos apenas olhando-se nos olhos uns dos outros”, diz o conquistador.
“Um dos maiores elogios que me fizeram foi dizerem que o livro se lia como um romance histórico, mas tinha a capacidade de fazer os leitores sentirem que estavam lendo sobre si mesmos”, conta Doug.
E acrescenta: “Espero que O Diário seja lido por pessoas como eu e minha mulher, à procura de respostas sobre como reunir amor, compaixão e desejo. Sobre como vivenciar a experiência amorosa, dentro de um compromisso de respeito mútuo.”
Sim, gafanhoto, Don Juan pode agora ser visto também como um guru do amor conjugal, mas vestirá, ainda e sempre, o manto eterno de um adorável sedutor.
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