José Carlos Oliveira, entre Rubem Braga e Vinícius de Moraes. Atrás, Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto. Ao Lado, Fernando Sabino.
Nos primeiros dias após o golpe militar de 31 de março de 1964, Ferreira Gullar se escondeu da repressão com os jornalistas Newton Carlos e Jânio de Freitas no sítio de outro jornalista, Reynaldo Jardim, perto de Nova Friburgo, estado do Rio. O jornalista Carlinhos Oliveira já estava lá desde 28 de março, mas escondendo-se do marido de sua amante.
Carlinhos estava com 30 anos e já era endeusado, na época, como o melhor cronista do Brasil. Ele também tinha o hábito, desde os 14 anos, de escrever uma espécie de diário íntimo em dezenas de cadernos e, dessa vez, sem nenhuma maldade, escreveu no seu diário que alguns amigos haviam chegado ao sítio e citou os nomes.
Um dia foi a Friburgo fazer compras e ao voltar viu no caderno que as cinco linhas sobre a chegada do grupo haviam sido cortadas com gilete. Carlinhos sentiu-se humilhado, esbravejou e foi embora. Nunca mais voltou a falar com Ferreira Gullar com quem, dez anos antes, havia dividido um quarto de pensão no Catete.
Em 1981, quando publicou seu romance à clef intitulado “Um novo animal na floresta”, que versava sobre a guerrilha urbana, Carlinhos deu o troco: ele usou os pseudônimos de João Ribas e Dolores para descrever e avacalhar o poeta Ferreira Gullar e sua esposa, a atriz Teresa Aragão.
No mesmo ano, inconformado com a crítica desfavorável ao livro publicada na revista IstoÉ pelo jornalista Geraldo Galvão Ferraz (ele acreditava que Ferreira Gullar é quem havia escrito o artigo), ele vociferou, por meio da crônica que escrevia diariamente no Jornal do Brasil: “Não serei assassinado por esses comunistas que mataram Glauber Rocha, João do Rio e Lima Barreto!”
Carlinhos imaginava injustamente que a resenha que espinafrava o livro era parte de um complô contra ele. Não era. Morreria em 1986, aos 51 anos, vitimado pela pancreatite e pela diabete. Desde então, mesmo sem complô, sua obra foi praticamente enterrada.
Tratamento inexplicável para um estilista da crônica que durante 23 anos escreveu cinco vezes por semana para o Jornal do Brasil, além de colaborar em outras publicações como a revista Homem, que depois virou a Playboy, com qualidade comparável à de Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga.
Esse lapso começou a ser reparado com o relançamento de seus livros pela editora Civilização Brasileira, por iniciativa do jornalista Jason Tércio, que em 1999 escreveu a sua biografia (“Órfão da Tempestade”).
Na semana passada, o livreiro e poeta Celestino Neto, o “Lé”, passou aqui em casa e me deixou de presente o livro “Diário Selvagem” (um catatau de 518 pp), editado postumamente, que li em menos de 48 horas e já vou emprestar para o poeta Aldisio Filgueiras porque tem tudo a ver com a gente.
A primeira vez que li alguma coisa do cronista foi por meio de uma entrevista que ele deu ao Pasquinzão de Natal, em 1976. Pelo que Carlinhos Oliveira disse na entrevista, ele já havia comido metade das socialites do Rio de Janeiro – e a outra metade seria questão de tempo. Feio que nem um cão chupando manga, ou o cronista tinha uma conversa de derrubar avião ou era um ficcionista do cacete.
Comprei seu segundo romance “Terror e Êxtase”, editado pela Codecri, e achei uma merda. Mas aí o poeta João Bosco Ladislau me emprestou dois livros dele, de crônicas (“O saltimbanco azul” e “A revolução das bonecas”), e tive de rever meus conceitos. O sacana escrevia bem pra burro.
Mais tarde, li seu terceiro romance (“Um novo animal da floresta”) e também gostei muito, apesar de continuar achando que suas crônicas – pelo retrato de época e pela boemia carioca, que ele soube retratar como poucos – eram infinitamente superiores aos romances. Mas esse seu livro póstumo foi um autêntico uppercut no fígado.
No “Diário Selvagem”, o charme e a tensão da época ficam em segundo plano. Aparece o drama pessoal do autor, que lutava contra a doença para tentar inscrever seu nome entre os maiores ficcionistas da literatura.
No relato dessa busca, revela a alma poética, solitária, egocêntrica e sacana. Um texto visceral como não se faz mais nesses tempos em que até as confissões íntimas são copidescadas ao gosto do mercado.
É essa uma das maiores qualidades do diário: a exposição do autor por inteiro, sem pudores morais ou físicos. Em vários trechos, o capixaba franzino, de óculos e cabelos ralos, lamenta ter que escrever por dinheiro. “O pior é não ter mais ânimo para escrever baboseiras de revista ‘masculina’. Que farei da minha vida? Vem aí uma crise econômica medonha.”
Ele queria se dedicar ao fazer literário, caminhar para onde seu ego apontava. Comparava-se a Hemingway, considerava elogios que o igualavam a Faulkner. Inflava-se assim, talvez, para seguir escrevendo em meio às brutais dores no pâncreas, e à hemorragia, que o obrigavam a um coquetel de remédios.
Maltratado pela doença e pela luta para curar-se, mesmo assim conseguia priorizar a criação. “Escuto o pensamento: está silente, no vestíbulo do murmúrio, antes do som e da sílaba. Me agradaria viver, dia e noite, nesta região.” Apesar de assíduo no burburinho dos bares, mal sabia lidar com os que o cercavam. “O mundo real me parece impenetrável. Ainda não sou meu contemporâneo.”
Era humanista, mas não marcou posição política nos anos de chumbo da ditadura. Temia, por isso, que os intelectuais de esquerda o boicotassem, como fizeram com Glauber Rocha, seu amigo.
Entre esses “comunas”, como dizia, incluiu o poeta Ferreira Gullar, com quem se indispôs. Cunhou então os verbos “glauberizar”, como sinônimo de perseguição, e “caetanizar”, como sinônimo de alienação.
A trajetória de um outsider
Em 1952, vindo do Espírito Santo, José Carlos Oliveira, com 18 anos, pisava nas pedras polidas da Guanabara. Duro, sem contatos em uma cidade de dois milhões e meio de habitantes e sem pouso certo, foi direto ao que interessava: o bar Vermelhinho, meca dos intelectuais, boêmios, artistas, jornalistas e políticos no coração da capital, na rua Araújo Porto Alegre. Em pouco tempo, era tão íntimo do bar quanto as mesas e cadeiras.
José Carlos Oliveira, rapidamente, passa a escrever na revista Manchete e no Jornal do Brasil (onde escreveria por 23 anos ininterruptos), além de Cigarra e do lendário Diário Carioca. Passa a escrever crônicas, estilo que, durante sua formação, não vislumbrava. Porque Carlinhos de Oliveira projetara sua maldita e bêbada trajetória para ser romancista – dos bons.
Mas sua vida facilitava a nova frente de trabalho: observador dos bares e das ruas, pensador franco atirador, olho-míssel nas cocotas e nos desvãos da vida urbana. Cronista da linhagem de Bastos Tigres, Emilio de Meneses, Lima Barreto (seu santo protetor), Marques de Rebelo e muitos outros.
Após morar com Ferreira Gullar em pensões no Catete, José Carlos Oliveira mergulha de cabeça no eixo Copacabana-Ipanema-Leblon e nunca mais volta. Os bares do Beco das Garrafas, os porres com cheiro de mar no Alcazar e no Castelinho, as bocas e bundas liberadas da nova Ipanema do Veloso, do Mau-cheiro, do Zeppelin e do Jangadeiros, abraços e ódios com os maiores heróis da cidade, tudo filtrado em suas crônicas.
Tornou-se um dos primeiros colaboradores fixos do antológico Suplemento Dominical do Jornal do Brasil – o SDJB. Tornou-se, para o mundo todo, Carlinhos Oliveira, porque era baixo (1,68 cm), franzino (52 kg) e possuía uma alma de passarinho.
A década de sessenta adentra o ventre do país e rasga as cabeças dos malucos de botecos e revolucionários artistas do Centro Popular de Cultura (CPC). Carlinhos Oliveira, na varanda do Antônio’s (Bartolomeu Mitre com Ataulfo), torna-se o cronista perplexo com a radicalização do homem brasileiro.
O pensamento boêmio não casa com a ditadura ou a guerrilha. As crônicas tornam-se contundentes, diretas, comportamentais, agonizantes, os temas e a linguagem ficam cada vez mais elaborados. O cronista passa, finalmente, a dar lugar ao romancista. Talvez, tarde demais.
O romancista José Carlos de Oliveira torna-se refém do cronista Carlinhos Oliveira. O cronista publica dois livros antes do romancista: Os olhos dourados do ódio (1962) e A revolução das bonecas (1967). Seu primeiro romance foi O Pavão desiludido (1972). Em 1978, seu grande – e único – best seller: Terror e Êxtase. O livro narra como saga urbana, ágil e alucinada, a relação entre o bandido assassino 1001 e Heleninha, filha de família rica de Ipanema. O livro vende mais de 15 mil cópias. O romancista José Carlos Oliveira, porém, continua sendo Carlinhos Oliveira.
A vida de José Carlos e Carlinhos é extensa demais para descrever aqui. O que não pode deixar de ser lido para se entender algumas das premissas do Brasil como frustração é o seu “Diário Selvagem”, publicado postumamente pelo seu biógrafo Jason Tércio.
O “Diário” é simplesmente uma das peças literárias mais fortes, diretas e fundamentais da literatura anos-70 em Pindorama. As entranhas de um escritor classe-média se contorcendo literalmente (Carlinhos sofria de pancreatite crônica e falência do fígado) em meio a uma ditadura militar que o envolvia e o enojava.
Muitos dos trabalhos sobre esse período não conseguem dar conta da vivência cotidiana de alguém que nem foi guerrilheiro, nem foi exilado. Carlinhos Oliveira / José Carlos Oliveira era um escritor torturado não só pela situação política como pelo seu embate com a Literatura, sua sina de ser um romancista “menor”, sem um grande livro, sem conseguir escrever o “romance brasileiro moderno”, algo que ele buscava em suas visões alcoolizadas.
Seus romances não ganharam a amplidão que ele buscava, seu grande sucesso fora um folhetim (“Terror e Êxtase” foi publicado em capítulos no JB). Falências, vergonhas, paranóias e sucessos que não o bastavam iam consumindo sua vida no início dos anos oitenta. Morre em Vitória, sua cidade natal, desiludido com o Rio de Janeiro, com o Brasil e com o Homem.
Em seu Diário, a frustração plena pelo estágio decrépito e carcomido que seu corpo, suas idéias, sua trajetória e o Brasil atingiam vem à tona sem filtros. A frustração de José Carlos Oliveira é a utopia realizada de Carlinhos. O romancista cerebral sucumbe frente ao cronista frívolo, o intelectual disciplinado é engolido pelo bêbado do Antonio’s. O cronista Carlinhos Oliveira afaga e afoga o romancista, dia-a-dia, até sua morte.
Trechos do diário:
29 de março de 1977
“Teoricamente bem. Melhor seria controlar o consumo de cigarros, mas me privo de tanta coisa no momento que seria uma injustiça. Ontem estive com Bruno, filho de Marcos de Vasconcellos, que com sua gatinha Kátia veio me procurar. Bom menino, escreve poemas ainda neuróticos, sem pé nem cabeça, mas se tiver um grão do talento do pai será algum dia um verdadeiro escritor. Está com 19 anos, Kátia é jovem, bela, e também escreve. Fiquei com inveja. Eu tão só e aquele boboca, feioso, meio debilóide, que conheço desde criancinha, namorando firme uma bela garota calma e carinhosa... Merda!”
21 de dezembro, 1977
“A propósito de Terror e êxtase: Mesmo com arma na mão, mesmo massacrando, torturando, humilhando o outro, o brasileiro encontra uma brecha pela qual manifesta sua alegria de viver. Assim, o homem cordial seria a besta feroz por definição, por ser o único animal que continua rindo enquanto esfola o seu semelhante. Ainda mais horrível e, ai de nós, maravilhoso: a vítima, sendo brasileira, também encontra jeito de soltar uma gargalhada enquanto a esfolam”.
6 de janeiro de 1978
“Um punhal pode passar gerações inteiras servindo para cortar páginas dos livros, numa atividade inofensiva e solitária. Só quando a mão de um assassino o empunha é que o punhal se torna sanguinário”
26 de agosto de 1978
“Agora vem Danusia Bárbara me entrevistar a mando de M.P. Esse aí não sossega: quer me derrubar de qualquer jeito; indivíduo perigoso por estar friamente cônscio de ser movido por forças irracionais / inconscientes. Não tenho dúvida que M.P. é psicopata. E eu tenho que conviver com essa gentalha, essa merdalhada humana. Os brasileiros me dão asco (Trêmulo de cólera, não posso continuar a escrever)”.
3 de dezembro de 1978
“Tenho que guardar os diários numa caixa, cuidando que traças e outros bichos não os destruam. Posteriormente serão datilografados. Se minha situação financeira estiver boa ano que vem, posso contratar uma secretária. O fato de ser escritor faz de meus cadernos fonte permanente de consulta. Por isso convém que sejam divididos Em assuntos (na medida do possível), tempo e lugar. Por necessidade de progresso espiritual, seriam inúteis se ao me debruçar neles eu não fosse a posteridade mesma”.
12 de janeiro de 1981
“O Otto escreveu sobre homicídios, ontem no Globo. Sustentou a tese de que o assassino, dentro de si (no foro íntimo) já está devida e severamente punido. O advogado Otto, o procurador do Estado Otto Lara Resende considera o julgamento de criminosos mera formalidade... E se diz escritor, e católico, e humanista, e liberal, e todo mundo acredita nisso. Compreendo minha solidão e meu estigma: outro dia vislumbrei um olhar de inveja mortal no rosto de Paulinho Mendes Campos. Eu posso falar de qualquer pessoa porque li o livro, porque sou escritor, porque não trapaceio. Mas o sucesso é do Otto, a seriedade existencial é do Paulinho, o estilo é do Fernando Sabino, o gênio é de Ferreira Gullar. Não há mais tempo para fugir à minha vocação e ao meu destino. É assim que quero este diário: tudo dito, nada retórico.”
12 de dezembro de 1984
“Vargas Llosa: Contra ventos e marés. Comovido, humilhado, ciente da injustiça que me esmaga, nessas páginas me encontro com um José Carlos Oliveira peruano. A semelhança é ofuscante. Mas nesse nível de grandeza ingênua não haveria justificativa social para um boicote inarticulado. A mediocridade brasileira, todavia, faz de mim um escritor maldito. Eles me malditizam por imitação.”
10 de novembro de 1985
“No Rio. Hoje de manhã, acordando de um sono tranqüilo, compreendi que o romance brasileiro não foi escrito nem houve avanço na arte narrativa. Admiti uma falha trágica: de tanto procurar um romance popular, cuja produção me asseguraria prosperidade, menosprezei o movimento popular transformador, mas me tornei um funcionário aplicado na profissão literária, preso aos formatos preexistentes, não ousando quebrar as estruturas petrificadas. Meu sonho de romancista era um sonho modesto, sem fundamento. Comigo morre um anseio. Há que viver agora modestamente, apegado aos salários que me venham, ao vil metal que me permita sobreviver – sem rancor, mas com espanto.”
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