sábado, 15 de agosto de 2015

Os Grandes Mestres da AMOAL – Vinicius de Moraes (8)


A exemplo de Carlinhos Niemeyer, um outro grande mestre da AMOAL que vivia em permanente estado de alegria era o capitão do mato Vinicius de Moraes, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô.

O biógrafo de Vinicius, José Castello, autor do excelente livro “Vinicius de Moraes: o Poeta da Paixão – uma biografia” nos diz que o poeta foi um homem que viveu para se ultrapassar e para se desmentir. Para se entregar totalmente e fugir, depois, em definitivo. Para jogar, enfim, com as ilusões e com a credulidade, por saber que a vida nada mais é que uma forma encarnada de ficção.

Mas ele foi, antes de tudo, um apaixonado – e a paixão, sabemos desde os gregos, é o terreno do indomável. Daí porque fazer sua biografia era obra ingrata. Dele disse Carlos Drummond de Andrade: “Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural. Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”.

Otto Lara Resende assim o definiu: “Manuel Bandeira viveu e morreu com as raízes enterradas no Recife. João Cabral continua ligado à cana-de-açúcar. Drummond nunca deixou de ser mineiro. Vinicius é um poeta em paz com a sua cidade, o Rio. É o único poeta carioca”. Mas ele dizia nada mais ser que “um labirinto em busca de uma saída”. O que torna Vinicius um grande poeta é a percepção do lado obscuro do homem. E a coragem de enfrentá-lo.

Parte, desde o princípio, dos temas fundamentais: o mistério, a paixão e a morte. Quando deixa a poesia em segundo plano para se tornar show-man da MPB, para viver nove casamentos, para atravessar a vida viajando, Vinicius está exercendo, mais que nunca, o poder que Drummond descreve, sem conseguir dissimular sua imensa inveja: “Foi o único de nós que teve a vida de poeta”.

Aos nove anos de idade parece que Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes pressente o poeta: vai, com a irmã Lygia ao cartório na Rua São José, centro do Rio, e altera seu nome para Vinicius de Moraes. Nascido em 19 de outubro de 1913, na Rua Lopes Quintas, 114, bairro da Gávea, na Cidade Maravilhosa, desde cedo demonstra seu pendor para a poesia.

Criado por sua mãe, Lydia Cruz de Moraes, que, dentre outras qualidades, era exímia pianista, e ao lado do pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta bissexto, Vinicius cresce morando em diversos bairros do Rio, infância e juventude depois contadas em seus versos, que refletiam o pensamento da geração de 1940 em diante.

Foi alertando sobre Ossanha, orixá conhecedor do segredo medicinal das ervas, que Vinicius de Moraes entregou de bandeja, que, como uma entidade do candomblé, ele próprio também detinha conhecimento metafísico para a cura de certos males da alma. Sobretudo para aqueles em que se tornou especialista por circunstância de sua genialidade poética: as dores de amor. Com a sabedoria de um orixá, o poeta avisava que “homem que vai atrás de mandinga de amor vai amar, vai sofrer, vai chorar”.

Mas ao mesmo tempo em que recomendava cautela em versos pontuados por predestinações, esse grande mestre da AMOAL não cumpria lá muito à risca boa parte dos preceitos religiosos como um bom filho de Oxalá. Era indisciplinado e imprevisível, embora adorasse previsões.

Dias antes de morrer, em almoço com amigos durante um passeio por Guaratiba, descobriu que uma mãe-de-santo estava sentada à mesa. Debilitado e pressentindo a hora da partida, ele, um eterno apaixonado pelo candomblé, não titubeou: “Diga a verdade: vou morrer?”, perguntou o poeta. “Claro que você não vai morrer, Vinicius. Você é imortal”, respondeu a ialorixá. E ela tinha razão.

Sarcástico, moleque, amigo, boêmio, mulherengo, biriteiro, Vinicius fazia do humor e da generosidade molas propulsoras para o lançamento à vida. Nasceu na Gávea, um dos bairros preferidos da elite carioca, mas gostava mesmo da boemia underground, muito antes de tal estrangeirismo ganhar conotação vanguardista e se tornar, no dicionário dos modernos, sinônimo de hype.

Quer, entretanto, coisa mais hypada do que as antologias, os sonetos e as canções de Vinicius? O carioca, que dedicou a vida às paixões torrenciais (teve nove mulheres) e às palavras, era vanguarda pura. Ele é o pai da Tropicália, dos parangolés de Hélio Oiticica, dos transes de Glauber Rocha, dos punks, da new wave, do BRock, dos clubbers, da Bunker 94. Sempre foi referência para todas as tribos, a fonte que nunca seca.

– Vinicius significa renovação constante. Sinto muita falta do amigo, dos papos na madrugada em torno da mesa de um restaurante, das viagens, das reuniões improvisadas em quartos de hotel, da brincadeira inteligente, da elegância com as mulheres... Era bom conviver com a sua generosidade. Ele proporcionava tudo isso aos amigos – recorda Toquinho.

A amizade entre os dois é, até hoje, um dos exemplos mais comentados e admirados na cena artística brasileira. Toquinho e Vinicius trabalharam juntos durante 11 anos. Compuseram cerca de 100 canções, lançaram quase 30 discos, fizeram mais de mil shows.

– Tudo em clima de cordialidade e descontração. Nada era sacrifício nessa verdadeira missão de nos aventurarmos em favor da música e do prazer de estarmos lado a lado, cercados de amigos e fazendo aquilo que amávamos. Ainda hoje parece que Vinicius está na Europa passando um tempo e que vai voltar um dia – sublinha Toquinho, o amigo que encontrou Vinicius, gélido e pálido, agonizando na banheira, na triste manhã de 9 de julho de 1980.

Quem teve o privilégio de desfrutar da intimidade do velho Vina (como carinhosamente Vinicius era chamado por amigos. A exceção era o jornalista Antonio Maria, que o chamava de Poesia e foi o primeiro a incentivá-lo a se tornar compositor de MPB) jamais se esquece de sua doçura quase infantil, do tesão arrebatador que sentia pela vida e também de seus conflitos. O maior deles: o álcool. Depois das mulheres, o uísque era a maior paixão do poeta. Ou teria tido o mesmo peso? Difícil saber. A bebida que tantas vezes o relaxou, abrindo-lhe a consciência para dissertar sobre cenas do cotidiano ou construir densas reflexões sobre a existência, foi a mesma que o destruiu aos 67 anos.

Mas talvez fossem exatamente esses paradoxos os elementos que fascinavam o mulherio à sua volta. Um poeta sedutor, um gênio aparentemente em conflito, um homem misterioso. Vinicius era uma espécie de François Truffaut da MPB. Um homem que amava as mulheres e que não sabia viver longe delas. Escreveu seu primeiro poema de amor aos nove anos, inspirado em uma colega de escola que reencontraria 56 anos depois. Seus amores eram sua inspiração.

Oficialmente, teve nove mulheres: Tati de Moraes (com quem teve Susana e Pedro), Regina Pederneiras, Lila Bôscoli (mãe de Georgina e Luciana), Maria Lúcia Proença (seu amor maior, musa inspiradora de Para viver um grande amor), Nelita, Cristina Gurjão (mãe de Maria), a baiana Gesse Gessy, a argentina Marta Ibañez e, por último, Gilda Mattoso. Mulherengo? Não, “mulherólogo”, como ele costumava se definir.

Tati, a primeira, única com quem casou no civil, é a inspiradora dos famosos versos “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja eterno enquanto dure”. Deixou-a para viver com Regina Pederneiras. O romance durou um ano, depois do que ele voltou com Tati para deixá-la, definitivamente, em 1956 e casar com Lila, então com 19 anos, irmã de Ronaldo Bôscoli. Foi nessa época que o poeta conheceu Tom Jobim e o convidou para musicar sua peça Orfeu da Conceição. Desta parceria, surgiriam músicas símbolos da Bossa Nova como Chega de Saudade e Garota de Ipanema, feita para Helô Pinheiro, então uma garotinha de 15 anos que passava sempre pelo bar onde os dois bebiam.

No ano seguinte, 1957, se casaria com Lucinha Proença depois de oito meses de amor escondido, afinal, ambos eram casados. A paixão durou até 1963. Foi pelos jornais que Lucinha, já separada, soube da ida de Vinícius para a Europa “com seu novo amor”, Nelita, 30 anos mais jovem. Minha namorada, outro grande sucesso, foi inspirado nela.

Em 1966, seria a vez de Cristina Gurjão, 26 anos mais jovem e com três filhos. Com Vinícius teve mais uma, Maria, em 1968. Quando estava no quinto mês de gravidez, Vinícius conheceu aquela viria a ser sua próxima esposa, Gesse Gessy. No segundo semestre de 69 começa sua parceria com Toquinho.

No dia de seu aniversário de 57 anos, em 1970, em sua casa em Itapuã, Vinícius transformaria Gesse Gessy, então com 31 anos, em sua sétima esposa. Gesse seria diferente das outras e comandaria a vida de Vinícius como bem entendesse. Em 1975, já separado dela, ele se declara apaixonado por Marta Ibañez, uma poeta argentina. No ano seguinte se casariam. Ele tinha quase 40 anos mais que ela.

Em 1972, a estudante de Letras Gilda Mattoso conseguiu um autógrafo do astro Vinícius após um show para estudantes da UFF, em Niterói (RJ). Quatro anos depois o amor se concretizaria. O poeta , já sessentão, ela, na flor da idade. No meio do percurso, entre um casamento e outro, houve affairs, casos extraconjugais como o que Vinicius viveu com a atriz Neusa Borges. Valia tudo por uma grande paixão, mas ao perceber que a chama da paixão havia se extinguido, não perdia um segundo. Pegava a escova de dentes e ia embora com a roupa do corpo, sem agressões. No outro dia, mandava uma das filhas recolher as outras roupas e os documentos.

– Ele tinha um absurdo frescor de espírito. Sabia viver a vida como ninguém e se entregava ao amor. Não gostava de rotina. Nem a barba ele começava a fazer pelo mesmo lugar. Um dia iniciava pelo lado esquerdo, no outro pelo direito. Acho que, justamente por essa aversão à rotina, ele tenha tido tantas mulheres – avalia Gilda Mattoso, última a viver com o poeta.

Vinicius era uma vítima tão fiel dos próprios sentimentos que jamais se importou, por exemplo, com a enorme diferença de idade entre ele e aquela com quem dividia o mesmo teto. Quando se conheceram, Gilda tinha 23 anos e ele, 64.

– Fiquei com medo de me decepcionar. Estava me casando com o meu ídolo. Vinicius era só alegria, não teve qualquer receio no início. Depois ele começou a questionar. Dizia que estava velho, que iria adoecer e que eu teria de ficar presa a ele. Mas eu achava tão maravilhoso estar casada com um ídolo que não queria perdê-lo nunca – diz Gilda.

Na biografia amorosa que escreveu sobre o amigo, o poeta Geraldinho Carneiro lembra os versos que o cronista José Carlos Oliveira fez para serem cantados com a cândida melodia de “Nessa rua, nessa rua tem um bosque”: “Se eu tivesse, se eu tivesse muitos vícios/ O meu nome deveria ser Vinicius/ Se esses vícios fossem muito imorais/ Eu seria o Vinicius de Moraes.”

Na verdade, mais do que imoral, Vinicius foi amoral, no sentido de que ele mesmo elaborava seus códigos de conduta, se é que tinha algum. Poucas pessoas viveram a vida com tanta liberdade, despudor e prazer. Poucos poetas foram tão sensuais, tão capazes de cantar o amor carnal com tanto lirismo. Seus sonetos sobre o tema podem figurar numa antologia ao lado dos de Camões. E sua conversa inteligente derrubava até avião.

Se bem que não foi bem na conversa, mas no assovio, que Vinicius, ao lado de Tom Jobim, atraiu aquela que se tornaria a mulher mais famosa de sua obra. A blondie Helô Pinheiro, na listagem de musas do poeta, é uma exceção, já que ele tinha preferência por morenas. Quem narra a história é o garçom Arlindo Costa de Faria, que, há mais de 40 anos, dedica-se ao balcão e às mesas do bar Garota de Ipanema.

– Ela passava indo pra praia e todo dia Vinicius e Tom não hesitavam em mexer com a Helô. Até que um dia ela veio e se tornaram amigos – descreve.

Por 17 anos Arlindo foi o garçom preferido da dupla famosa. Para Tom, chope garotinho. Para Vinicius, uísque. Uma, duas, três, quatro, cinco doses. Era praxe.

– Geralmente, ele parava na quinta. Vinicius bebia, bebia e não ficava bêbado. Era impressionante. E sabe que nunca vi uma confusão entre eles? Tinha dias em que a dupla reunia todo mundo aqui: Bonfá, Baden, Toquinho, Chico, Miúcha. Todos bebiam e nunca presenciei uma briga em meio àquela bebedeira – observa Arlindo.

Carlos Lyra, outro dos parceiros de fé do poeta, explica:

– Na verdade, nossos laços de amizade eram muito fortes. Vinicius era pacificador. Não havia tempo para briga, só para cantorias. Aliás, a única briga a que assisti por causa de bebida, naquela época, foi na casa do Bené Nunes. Estávamos todos lá reunidos, quando o Newton Mendonça, já meio de porre, começou uma discussão infinda com o João Donato – narra.

Miúcha emenda:

– Bebíamos em quantidades industriais, como o Tom dizia. Era muita felicidade, muito prazer, muita gozação – lembra, rindo.

Lyra aproveita para desfazer mal-entendidos:

– Há muitas lendas criadas por aí. Eu, por exemplo, não freqüentava o Garota de Ipanema. E o Vinicius, por sua vez, nunca participou das reuniões na casa de Nara (Leão), assim como o Tom. Quem ia à casa de Nara éramos eu, o Bôscoli e o Menescal – enfatiza.

Amigos, amigos, negócios à parte, Vinicius sempre despertou interesse de comerciantes e empresários por causa de sua obra e das inúmeras histórias que disseminaram por aí a seu respeito. Seu nome é sinônimo de dinheiro. O Garota de Ipanema, por exemplo, muito antes de ser batizado como tal, no fim da década de 60, chamava-se Veloso. A clientela era boa, mas não tanto quanto a angariada após a mudança de razão social.

Em 1974, a dupla Manoel Inácio e Manoel Peralta Capão comprou o bar e não largou mais o negócio. Quando tornou-se dono do estabelecimento, Inácio tinha um Fusca 66 e morava no Méier. Hoje tem carro importado e mora na Barão da Torre, Ipanema. A trajetória de Peralta não é diferente. Andava num Corcel II no início da sociedade, e, atualmente, circula de importado. De Bonsucesso pulou para a Barra da Tijuca. E mais: o Garota de Ipanema foi o carro-chefe para a abertura de todas as outras casas da série: Garota da Gávea, Garota da Tijuca, Garota da Urca, Garota do Leblon, Garota da Penha. Todos esses bares são conquistas da dupla pós-Garota de Ipanema. Até o Vinicius Au Bar é, agora, de propriedade dos dois empresários. Comercialmente falando, o nome de Vinicius ainda rende.

Responsável pela administração dos bens deixados por Vinicius, Luciana de Moraes, a quarta filha do poeta, fala sem problemas das questões comerciais referentes à obra do pai, mas não destaca números.

– Nenhum de nós é milionário. Temos um padrão de vida bom à custa de muito trabalho. Vinicius não é essa mina de dinheiro que todos imaginam. Suas coletâneas não vendem 1 milhão de cópias, mas há uma constância na comercialização de suas obras. Há uma estabilidade neste mercado que nos permite viver bem – diz.

– Meu pai e Vinicius já eram amigos antes de eu nascer – explica Miúcha, irmã de Cristina, Ana, Piii e Chico Buarque de Holanda. “Por isso não me lembro do dia em que conheci Vinicius, ele sempre esteve por ali. Sua presença se tornou uma constante em minha memória, as noites se transformavam em festa quando ele aparecia nas várias casas onde moramos pela vida afora, no Rio, em São Paulo ou em Roma, sempre com muitos e alegres amigos e com pelo menos um violão. E muita cantoria, muitos risos até de madrugada. A criançada (somos sete irmãos) foi crescendo e, aos poucos, ganhando privilégios. Nessas noites mágicas podíamos ficar ouvindo tudo sentados na escada – só não podíamos fazer barulho. Aos poucos fomos admitidos na sala, no meio dos adultos. E, assim, a gente foi ouvindo Noel Rosa, Ismael Silva, Ari Barroso, Dorival Caymmi, Antonio Maria e Custódio Mesquita e até formamos um vocal para imitar as pastoras do Ataulfo Alves. Vinicius teve a paciência e a gentileza de me ensinar alguns acordes no violão, com os quais eu conseguia acompanhar suas músicas. Meu violão se chamava Vinicius, antes mesmo de eu saber que o poeta seria duas vezes meu padrinho. Pois foi por sua obra e graça que me apresentei em público pela primeira vez, em Roma, com 15 anos.

– Vivi muitas emoções ao lado de Vinicius, mas lembro-me especialmente da Missa dos Trabalhadores em 1º de Maio de 1979, no Grande ABC, em São Paulo – recorda Gilda Mattoso. “Nosso amigo Samuel Wainer trouxe o recado do presidente do sindicato dos metalúrgicos, um jovem pernambucano, barbudo, de que o seu poema O operário em construção havia sido escolhido pelos operários para ser lido na missa e eles queriam muito que Vinicius lesse o poema. Poucas vezes senti Vininha tão cheio de emoção e orgulho como naquela tarde quente, lendo sua poesia para a multidão! Saímos de lá com a alma lavada e sabe o que aconteceu? Aquele rapaz barbudo é hoje nosso presidente.”

Na data em que Vinicius completaria 90 anos, seu velho parceiro de shows musicais e vagabundagem etílica publicou este pequeno bilhete no Jornal do Brasil:

Ah, meu querido Vina! Saudade daqueles dias em que tínhamos tempo só pra ser felizes. E gozavas da plenitude de teus 57 anos... Hoje eu é que os tenho. As músicas fluíam e o tempo passava leve e vagabundo. Foste teimoso em enfrentar o desafio de chegar aos 90. Acho que não imaginavas a injúria de parar de fumar, trocar o uísque pelo suco de tomate e esquecer os papos-de-anjo e compotas que devoravas com os olhos fechados de prazer. Te olhando, às vezes, parece que não cabes no século 21... Melhor remarcar em teu calendário aquela manhã de 9 de julho de 1980 e voltar à tua imortal felicidade ao lado dos artífices de teu tempo, Ciro, Baden, Tom, Elis, Otto, Drummond, Mário, Oswald, Rubem, teu Maria, Pixinga, Elizete, que ficar à mercê desses dias tão vazios de românticas irreverências e atrevidas ingenuidades. Esta semana podemos nos encontrar no Gibo para saborear um suculento spaghetti e um vinho italiano que só o Gilberto sabe escolher. Sem que teus médicos saibam, claro. Não sei se conseguirás, no decorrer dos 90, quando ela chegar, tratar a morte como tua mais nova namorada, do jeito que sempre proclamaste. Pois é, meu amigo, decididamente não ficam bem ao teu olhar ainda verde-gaio as tão fortes marcas do tempo... Mesmo assim, seria tão bom poder te abraçar novamente e gozar de tua perene generosidade. Um beijo carinhoso do teu eterno amigo Toquinho.

O lugar preferido da casa de Vinícius de Moraes era a banheira. Mas havia alguns pré-requisitos: as torneiras tinham de estar inclinadas em determinada direção para que o fio de água quente o acalmasse e o de água fria o mantivesse aceso. A tampa do ralo deveria ficar um pouco aberta para permitir a renovação da água. Uma tábua sobre as bordas da banheira servia de mesa, onde ele punha livros, pedaços de papel em que fazia anotações e a máquina de escrever para trabalhar horas a fio. Colocava também um espelho e o barbeador elétrico para fazer a barba. Se o cansaço batia, cochilava.

Certo dia, num cochilo, os óculos escorregaram. Vinícius acordou de supetão e olhou os óculos enfiados num dos joelhos. “O que o Magalhães Pinto está fazendo aqui?”, perguntou em voz alta, referindo-se ao calvo ex-governador de Minas Gerais. Tinha muita insônia e tentava curá-la no banho. Muitas vezes, no meio da noite, ia direto para a cama sem se enxugar. “Acordava com a cama ensopada. Outras noites, a casa ficava inundada”, conta Gilda Mattoso.

Diplomata e poeta, Vinícius de Moraes entrou na música popular para emprestar-lhe dignidade e modernidade. Antes, boa parte das letras era excessivamente dramática, empostada. Vinícius introduziu o tom coloquial, mas de refinadíssima sensibilidade. O musical Orfeu da Conceição, de Vinícius, estreou em 1956, no Teatro Municipal do Rio, com cenário de Oscar Niemeyer e música de Tom Jobim. É o ponto de partida da bossa nova. Em 1959, o filme Orfeu do Carnaval, do francês Marcel Camus, baseado na peça de Vinícius, ganhou a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor fita estrangeira.

Vinícius tinha medo de avião, com razão. Em 1946, um hidroavião da Air France em que viajava com o cronista Rubem Braga sofreu um acidente no Uruguai. A hélice desgrudou do corpo do avião e invadiu a cabine matando um passageiro sentado à frente do poeta. Mãe Menininha do Gantois – à qual foi apresentado por uma de suas esposas, a baiana Jesse – amenizou o trauma. “Você não vai morrer num avião”, previu. Vinícius era agnóstico, mas aceitou a recomendação de Mãe Menininha de passar no corpo uma mistura de água e farinha de mandioca antes de embarcar, uma espécie de “pirão dos covardes”, segundo ele.

Seu melhor amigo não era compositor, e sim o paulista José Marcos da Costa, o Zequinha, dono de uma fábrica de tintas. Quando estava com ele, Vinícius costumava dizer à esposa, em tom jocoso: “Não se meta, somos um casal idoso que completou as bodas de prata.” Nos shows, apresentava-se sentado diante de uma garrafa de uísque.

No final da vida, diabético, ele foi obrigado a trocar o malte escocês pelo vinho branco, dois ou três copos durante o jantar, sem traumas. Mas jamais abriu mão de seu doce preferido, o papo-de-anjo. Foi ponto de honra na negociação com o doutor.
Vinícius morreu quando compunha a trilha do programa infantil Arca de Noé, da Rede Globo. Estava sem sono e ao raiar do dia mergulhou na banheira para relaxar. Sofreu um edema pulmonar agudo e o coração não resistiu. Como Mãe Menininha bem havia dito, ele não deixou esse mundo a bordo de um avião. Foi dentro da banheira, seu lugar predileto.

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