terça-feira, 3 de março de 2015

ABC do Fausto Wolff (Parte 62)


RABELAIS, François (1484?-1553) – Dois caras que quanto mais investigo menos descubro sobre suas vidas, são Rabelais e Hieronymus Bosch. Não fosse pelos livros do primeiro e pelos quadros do segundo daria para desconfiar que nunca existiram.
De Rabelais, por exemplo, se sabe que foi um monge franciscano que virou beneditino. Se foi expulso pelos franciscanos ou se preferiu beneditar a franciscar, a História não registra.
Dizem que perto do fim da vida estudou medicina, mas se desconhece o nome de qualquer pessoa que tenha curado. Está aqui porque escrevia histórias de sacanagem e foi protagonista – embora não confesso – de muitas das suas narrativas.
Se o marquês de Sade houvesse lido Rabelais com maior atenção, certamente não se levaria tão a sério, substituiria a dor pelo humor e não acabaria a vida entre os malucos do hospício de Charenton.
Rabelais sacaneou muita gente e seguramente teria acabado em cana não fosse um cara tão cheio de charme a ponto de se tornar chapinha do rei Francisco I e da rainha Margarida de Valois.
Parece que a dupla real fazia pipi nas calças ouvindo as histórias desse monge do qual o descendente mais moderno é o fradinho baixinho do Henfil, talento assassinado em 1988 pelo governo brasileiro, que lhe vendeu sangue infectado com o vírus da AIDS.
O trabalho mais conhecido de Rabelais, escrito em estilo idiossincrático e debochado, são os cinco volumes que compõem As Grandes e Heróicas Aventuras de Gargantua e Pantagruel, que – está na cara – foram condenadas pela Sorbonne e pelo papa de plantão.
Ao narrar escatologicamente os bodes que criaram o gigante Gargantua, seu filho Pantagruel e o companheiro de farra, Panurge, Rabelais usou o sexo para desmascarar a mesquinhez e a hipocrisia dos poderosos; os mesmos poderosos que assariam, quase cinquenta anos depois, numa fogueira em Roma, outro frade, este dominicano, chamado Giordano Bruno, pelo crime de dizer que a terra girar em torno do sol era mais natural que a Santíssima Trindade.
Vou dar um trailer rabelaisiano. Panurge, um grande gozador (desconfio que Shakespeare bebeu no vinho de Rabelais para criar o seu Falstaf), tem um ataque de TG (tesão galopante) ao ver uma senhora da alta sociedade parisiense sair da missa. Aproxima-se galantemente e informa:
– Madame, seria de grande benefício para a humanidade, delicioso para a senhora, honroso para a sua descendência e, principalmente, necessário para mim, que eu a cobrisse a fim de propagar a minha raça.
A dondoca, completamente despida de senso de humor, manda o bom Panu procurar a turma dele. Ele, porém, não desiste:
– Garanto-lhe, madame, que bastaria olhar uma única vez para a minha magnífica mortadela...
Não consegue terminar a frase, pois leva um tapa na cara. Não perde entretanto a postura:
– Deusas e deuses celestiais, como seria feliz o homem que a tivesse em seus braços e pudesse tocar, mesmo que de leve, o seu presunto na sua presunta...
A esta altura a mulher começa a berrar e o sacana dá no pé. Domingo seguinte, porém, disposto a demonstrar a paixão que sente, chama a mulher para um canto. Ela, pensando que ele irá se desculpar, se aproxima. É quando Panurge abre o seu casaco e lhe mostra a peça duríssima:
– Olhe como a senhora me deixa.
Ela recomeça o berreiro e Panurge finalmente se convence de que a sua paixão não é correspondida. Foge e planeja a vingança.
Primeiramente mata uma cadela no cio. Depois faz das chamadas partes pudendas da bichinha uma espécie de pó.
No domingo seguinte, na igreja, joga o pó sobre a mulher que o desprezara, apesar dos seus bons modos. O cheiro do pó atrai para dentro do templo quase todos os cachorros de Paris, que se jogam sobre a madame.
Os que fizeram menos cheiraram e lamberam, os que fizeram mais a mijaram, isso para não falar dos que tentaram conhecê-la literalmente. Antes que a grã-fina pudesse se trancar em casa, ela havia atraído 600.014 cachorros.
Certamente, um exagero de Rabelais. Provavelmente não foram mais que uns quatrocentos cães.
Atenção e muito respeito, senhoras da alta sociedade carioca: Nataniel Jebão tem a receita do pó de Rabelais.

RAIS, Gilles de (1404-1440) – Barão, marechal de França, riquíssimo senhor feudal. Se distinguiu aos dezoito anos como soldado corajoso e leal, lutando primeiro nas guerras pela sucessão no ducado da Bretanha e, posteriormente, a favor da duquesa de Anjou, contra os ingleses. Foi designado para assessorar Joana d'Arc e lutou heroicamente em muitas batalhas ao lado dela. Libertou Orleans junto da camponesa de Dorémy (que virou Santa) e consagrou Carlos VII, que o promoveu a marechal aos trinta anos.
Continuou servindo como guarda-costas de Joana quando Paris foi atacada. Depois da prisão dela ele ainda tentou libertá-la inutilmente. Como todos sabem, ela acabou assada pela Igreja.
O jovem marechal voltou para o seu condado, onde fundou a capela de Machecoul e com seus soldados encenou para a população a batalha de Orléans. Sua bela mulher, Catherine de Thouars, o esperava em seu fabuloso Castelo na Britânia.
Era dono de uma quinta parte das terras de França, que havia herdado de seu pai e do seu avô materno. Sua corte era mais esplendorosa que a do rei e gastava dinheiro a rodo com a manutenção de centenas de criados, soldados e padres.
Além disso, era um mecenas da música, da literatura e das artes plásticas. Se dava ao luxo de ser um senhor feudal justo, boa-pinta, inteligente e amado por todos os moradores do seu domínio.
Agora eu pergunto: como que o dono de tão belíssima biografia foi condenado à morte e enforcado? Eu mesmo respondo: parece que era um mau entendido, ou seja, uma bicha muito ruim.
Aliás, botem ruim nisso: a bicha mais ruim da história da humanidade.
Assim que se retirou para o seu castelo, crianças de cinco a quinze anos, de ambos os sexos, começaram a desaparecer das redondezas. E continuaram desaparecendo durante mais de cinco anos (1435-1440).
No princípio, por incrível que pareça, ninguém reclamou. O sacana raptava, violentava e depois desmembrava os corpos dos infantes. Dava, evidentemente, preferência aos meninos, cujos pauzinhos comia como churrasquinho depois de matá-los.
Ficou impressionado com a vida dos imperadores romanos e quis superá-los, coisa que conseguiu, pois era infanticida, necrófilo, pederasta, satanista e sacrílego.
O pessoal podia adorar o seu senhor mas não era tão burro a ponto de aceitar calmamente o desaparecimento de mais de oitocentas crianças, sempre nos arredores do castelo.
Acabou sendo preso em 1440, julgado perante o tribunal eclesiástico de Nantes e, posteriormente, pela corte civil.
A princípio o monstrão sabia do seu poder – ele se recusou a tomar conhecimento das denúncias.
Quando porém, foi ameaçado com a excomunhão – vai ver que tinha medo de ir para o inferno, pois era um bom católico, que rezava e comungava todos os dias em sua capela particular com seus padres particulares –, reconheceu a autoridade da Corte, mas se declarou inocente.
Foi condenado por heresia pelo tribunal da Igreja e sentenciado à forca pelo tribunal civil.
Sua confissão, seu arrependimento e a resignação com que deixou que lhe enfiassem o laço do carrasco no pescoço fez com que fosse aclamado como um exemplo de ovelha perdida que volta ao rebanho de Cristo.
Antes de morrer se proclamou católico temente a Deus e o que é mais incrível: a população feminina, principalmente, dos seus domínios implorou que não o matassem!
Há quem diga, porém, que o duque de Bretanha estava interessado na sua ruína financeira e que ele só confessou debaixo de tortura. E o pessoal torturava para valer naquela época!
Só não torturava tanto quanto os gorilas do DOI-CODI, no Brasil, porque ainda não haviam descoberto a eletricidade. Em suma, não levou choque nos culhões. Mas, porra, que fim levaram as oitocentas crianças?

RASPUTIN, Grigori Jefimoviteh (1871? - 1916) – Deste se pode dizer tudo, menos que fosse hipócrita ou que jogasse água fora da bacia. Era metido a mágico, mas não escondia. Aliás, comparado com ele, o Tartufo, de Molière (boa a tradução do Guilherme de Figueiredo, devo dizer), não passa de um sacaninha pé-de-chinelo. A começar pelo seu nome: Rasputin, em russo, quer dizei debochado. Em português, rasputinha, provavelmente, quer dizer amante do ditador de plantão.
Aos vinte anos de idade e quase dois metros de altura, decidiu que queria ser santo. Escolheu uma religião à altura do seu talento: uma seita chamada Khistly, cujo lema era “Peque porque você talvez seja perdoado”.
Ué,o Gilles de Rais, depois de matar oitocentas criancinhas, não medrou na hora de ser excomungado por temor de não ir para o céu? Antônio Carlos Magalhães, Roberto Campos, Delfim Netto, Newton Cruz, Celso Furtado, Moreira Franco, Saulo Ramos, Rubem Medina, Paulo Maluf, Ernesto Geisel, João Figueiredo, Walter Pires, Brilhante Ustra, entre outros, não são todos bons cristãos? Qual é o espanto? Mas rasputearei.
Os maluquetes da seita Khistly passavam os dias e as noites dançando e se chicoteando. Depois de bem dançados e chicoteados iniciavam os negócios sérios: tremendos bacanais que duravam semanas. Bons bacanos.
Como Rasputin dava cinco sem tirar e podia escalar várias mulheres numa só noite, logo se tomou líder do grupo e passou a ser conhecido como “o monge grande, porém, duro”.
Sua primeira providência foi expulsar todos os homens da seita a porradas. Em seguida perambulou anos pela Rússia acompanhado de algumas dezenas de mulheres. Ele pregava, curava e organizava surubas monumentais, tudo em nome de Deus.
Eu disse que ele curava porque, aparentemente, tinha um poder energético tão grande que bastava pousar a mão sobre a parte doente do corpo do cara que pedia o seu socorro para curá-lo. Parece, também, que não cobrava nada dos pobres e havia muitos pobres na Rússia do seu tempo.
Em 1903, ele pintou com o seu mulherio em São Petersburgo, onde foi apresenta-do a uma grã-fina doidinha (as pobres têm seu valor, mas uma ricaça boa, cheirosa e limpinha vale muito mais), dessas que vivem em cartomantes, sessões espíritas, consultam horóscopos, búzios, cuidam do biorritmo e hoje em dia dividem seu tempo entre o psicanalista e o pai-de-santo quando não estão corneando o marido.
De cara ele curou a caganeira do cachorro da duquesa Militsa (este o nome da grã-fina) e daí por diante se colocou na posição que o diabo gosta. Passava os dias enchendo a cara, trepando e curando, não necessariamente nesta ordem.
Acabou sendo apresentado ao czar (vem de César, que, por sua vez, quer dizer tesoura em inglês) Nicolau e à mulher Alexandra, que recém havia dado à luz um menino hemofílico que os melhores médicos da Corte haviam desenganado. Pois não é que o Rasputin fez com que o garoto melhorasse a ponto de convencer a czarina que ele era o único homem do mundo que podia manter o filho dela vivo?
Mal-educado, bêbado, sujo, barba longa e ensebada, fedendo, ele fazia o que queria numa corte corrompida e decadente que logo logo, com Lênin, veria o que era bom para a tosse, bronquite, rouquidão.
Sua influência sobre Alexandra era tamanha – uma vez, de porre, ele disse que a havia comido – que em 1900 ela lhe escreveu numa carta: “Meu amado mestre, redentor e mentor, eu gostaria de morrer dormindo sobre seus ombros”. E não era pelo tamanho dos ombros que Rasputin era conhecido.
Comeu metaforicamente quase todas as mulheres comíveis de corte, que lhe lambiam os dedos após ele haver comido literalmente, como sempre fazia, seus alimentos com as mãos. A polícia secreta, por ordem de membros moles e invejosos do governo, passou a vigiá-lo e reportou que em sua casa viviam entrando e saindo princesas e prostitutas.
Deduraram Rasputin para Alexandra, mas ela os chamou de detratores e os mandou ler os apóstolos, que “também beijavam as pessoas como forma de cumprimento”.
Um belo dia, porém, o príncipe Yusipov decidiu matá-lo. Não de homem para homem, pois o bicho era mais forte que um cavalo.
O príncipe e mais um bando de canalhas da extrema-direita russa o convidaram para um jantar à base de vinho Madeira e tortas recheadas de cianureto. Rasputin comeu e bebeu veneno suficiente para matar cinco elefantes e pediu mais. Deram-lhe cinco tiros. Ele não pediu mais. Limitou-se a cair sem perder os sentidos. Mas não morreu. Tiveram que botá-lo num saco, ainda com vida, e afogá-lo no rio.

Era casado e tinha três filhos medíocres. Quem morreu logo depois dele foi o príncipe, filho de Nicolau e Alexandra. 
O que se passou em seguida, em 1917, todo mundo sabe.

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