terça-feira, 6 de janeiro de 2015

À Guisa do Precoito (*)


Se é uma palavra suicida. Não fosse, seria a vida. (FW)

Não tirem ilações, pois elas gostam de ficar escondidas onde estão.
Nem escrevam teses, pois tenho certeza que vocês têm talento pra coisa muito melhor, como jogar pedra no ônibus do Sarney, por exemplo.
Este é um livro de humor.
Embora esteja cheio de fluidos vaginais e trate também de política, me refiro especificamente à forma de comunicação na qual um estímulo mental ilumina o reflexo do riso.
Reflexos iluminados, portanto, prestem atenção.
Tudo começou por acaso numa noite escura e chuvosa na redação do Pasquim ao lado do Morro do Pavãozinho, pavãozinho este comido há mais de cinquenta anos pelos habitantes da favela.
O Jaguar comia um sanduíche de mortadela, o Ziraldo se admirava no espelho e eu examinava as provas do hebdomadário (semanário com corcova) que deveria sair no dia seguinte.
Falávamos mal do Paulo Francis porque ele escrevia melhor que nós, morava no East Side de New York, ganhava em dólares e era amigo do Delfim Neto.
Depois de examinar as provas, sentenciei: — O número está muito cagarregrense! (que é como são chamados os que nascem no município paulista de Caga Regra, barrão natal de muitos dos 315 jovens críticos pós-modernos da Folha de São Paulo).
Naquela época — 78-79 — a diversão do pessoal do Comando de Caça aos Comunistas, quando não estavam enfiando objetos estranhos nos respectivos orifícios, era jogar bombas nas bancas que vendiam o nosso jornal.
Havia, portanto, poucas razões para a gente estar rindo.
Vai daí que o Pasquim estava sem o molho inglês, a mostarda e o quetechupe que o caracterizavam.
Deixei de lado o artigo político que estava escrevendo e resolvi produzir matéria mais divertente, como dizem os malaios do sul.
Tanto o Jaguar quanto o Ziraldo que mantêm uma relação platônico-sexual há mais de trinta anos, concordaram que o leitor do Pasquim, principalmente o carioca gostava (repararam como o cacófato dá cago direitinho? Não? Caguei!) mesmo era de política e sacanagem.
Foi assim que nasceu o ABC do Fausto Wolff.
Como eu trabalhava na redação e acompanhava todas as matérias a serem publicadas, sempre que o jornal se levava a sério demais e publicava artigos masturbando o ego de Stockheuser, Milan Kundera ou um novo filósofo francês, por exemplo, eu escrevia um ABC sempre com um pequeno lead ou introito, um troço, mais ou menos, assim:
“Quinta-feira passada um reboliço no Jockey: o companheiro Roberto Marinho que estaria assistindo um páreo em homenagem ao O Globo, foi chamado às pressas à comissão de corridas.
Logo depois veio a notícia: o Golbery havia se demitido.
Por razões mais óbvias que a incompetência do governo Figueiredo, deixei de me interessar pelos cavalinhos enquanto uma fria solitária nadava dentro da minha espinha dorsal.
Disse para o meu zíper: “Os incompetentes que preferem dar porradas econômicas e morais perderam para os incompetentes que adoram baixar o cacete.”
Tirei o meu da reta e decidi escrever um ABC.
Abertura é isso: um cidadão deixa o posto de eminência parda no meio duma crise “por razões pessoais” e em seu lugar assume um “liberal” que foi apenas chefe da Casa Civil do Médici.
Dentro de algum tempo vai virar santo.
Mas consolem-se, pois em vez de ser substituído por um leitão... de abreu poderia ter sido substituído por um javali... do feicheu.”
Mas nem sempre os ABCs eram motivados por covardia política.
Às vezes eram produto de dor de corno e ressaca. Observem:
“Das lágrimas que virão eu já conheço a história; eu sei de cor a dor noturna da memória.”
Estes dois versos sobraram de um longo poema que andei escrevendo nos últimos dez dias.
E rasguei, pois uma vez escrito, o poema havia cumprido a sua função.
Além disso, passei bêbado a maior parte desses dias e consegui escapar da realidade com raro talento.
Não li jornais e bebi meia-dúzia de garrafas de conhaque Dreher, o que é dose pra nenhum Dylan Thomas botar defeito.
Dormi 24 horas e acordei agora há pouco pensando que havia morrido finalmente.
Mas eu sou forte pacas. Bem mais forte que as minhas neuras.
Essas coisas, às vezes, acontecem com jornalistas quando eles não podem interferir na realidade de superfície e são obrigados a aceitar o fato de que a profissão está acabando graças à falta de um governo decente, de uma oposição atuante e da existência de um povo miserável, cansado e paciente.
É verdade que a vitória do Reagan, a tola mentira de uma namorada, um quarto de pensão mais escuro que a alma de certos ministros, além da minha total incapacidade de “vencer na vida”, ajudaram um pouco.
Como não morri, vos brindo com um novo ABC.
Eventuais viagens também serviam de pretexto:
“Sorrateiras como o diabo da Tasmânia, silenciosas e ameaçadoras, tendo apenas o luar como testemunha, elas saem do meu subconsciente, ultrapassam as frondosas neuras, acabam com um cipoal de esquizofrenias e, finalmente, atacam as minhas três letras de hoje. Os maníacos e as maníacas sexuais que há muitos anos me acompanham neste jornal, pensaram que eu os(as) havia abandonado, hein? Embora eu esteja em Beirute a caminho de Damasco, quando vocês lerem essas revelações, lembrem-se que o meu ABC não serve apenas como motivo para altas escabelações palhaçais ou coçações ostrais. Servem também como matérias adiantadas que me permitem viajar em paz.”
Às vezes, o absurdo:
“Ali vocês querem lead, né? Querem lead, né? Ora, vão jogar no prego ou chupar um bicho”.
De 1978 a 1984 sempre que havia um buraco no jornal eu introduzia nele o meu ABC duro.

Três letras de cada vez.

Depois da publicação dos primeiros, Sergio Cabral, até pouco tempo secretário de Esporte e Lazer do município do Rio de Janeiro (não poderia ser titular de outra pasta com a barriga que ostenta: corre pelo esporte e bebe chope pelo lazer) através de uma série de bilhetinhos bem escritos, informou aos leitores que adotava aquela arquitetura jornalística porque eu me apossara do seu ABC.

E que anos antes, também em forma de verbetes, ele escrevera uma série de matérias sobre música popular brasileira com o título geral de “ABC do Sérgio Cabral”.

Expliquei na ocasião que o primeiro ABC, segundo Millôr Fernandes — il miglior fabbro —, era autoria de um analfabeto anônimo e entediado que resolveu inventar o alfabeto.

Posteriormente, surgiram o ABC da Arte, o ABC de Aristóteles e mais recentemente o ABC (Argentina-Brasil-Chile) de intercâmbio de novas técnicas de tortura, para não falar do ABC de São Paulo, onde até pouco tempo atrás grevistas exaltados insistiam em rebentar os cassetetes da Polícia Militar a cabeçadas.

Meu ABC tratava de sexo e consequentemente de tudo — expliquei. O Sérgio entendeu.
Mas em verdade não tratava de tudo.

Verifiquei isto quando meu amigo Ivan Pinheiro Machado, um dos donos da L&PM Editores, propôs editar meus ABCs em forma de livro.

Fui para casa e verifiquei que o material não era suficiente para ser utilizado pelos membros da Academia Brasileira de Letras, da Assembleia Nacional Constituinte e outros antros de perdição.

De modo que trabalhei durante alguns meses e acrescentei umas 400 laudas ao material original.

Ficou perfeito.

Perfeito, entretanto, ele não poderia ser publicado, pois teria mais de 700 páginas e custaria muito caro, o que é impensável num país onde todo o mundo vê o mundo através de uma novela autocensurada dois mil e quinhentos anos depois de Sófocles ter escrito o original: “Mandala ou a tragédia do crioulo grego que acaba cego e doidão”.
Fui obrigado a fazer uma seleção e por isso, vocês sentirão a falta de muitos nomes ligados à sacanalogia branca como Aretino, Bocage, Horácio Alger, Ambrose Bierce, Richard Burton (o explorador bêbado e não o ator bêbado), Giacomo Casanova, Ali Khan, Toulouse Lautrec, Napoleão Bonaparte, Simone de Beauvoir, Leonardo da Vinci, Benvenuto Cellini, Frank Harris, Bernard Shaw e outros, ligados à sacanalogia negra, como a Constituinte, os pastores eletrônicos da TV, Álvaro Valle, o deputado que foi comido pela esperteza, etc.

Nenhum desses recebeu verbete especial, mas muitos acabaram como coadjuvantes de verbetes alheios.

As próximas edições, porém, dependendo do comportamento de vocês, serão aumentados em tamanho e preço.

Todas edições duras. Nenhuma em brochura.
Escrevi este livro para ser lido do princípio ao fim. Eu mesmo li e gostei.

Vocês notarão que há uma certa linearidade absurda mas absolutamente necessária, se é que me entendem.

Quando tiverem acabado, guardem-no para eventuais consultas.

Os mais inteligentes notarão as implicações políticas dos verbetes; os realmente iluminados perceberão de cara que procurei analisar os fatos, as situações, os hábitos, costumes, filosofias, taras e desvios à luz de uma atualidade carioca.

Perceberão também que procurei enfrentar o palavrão de homem para homem sem as hipocrisias do tempo que fazem do palavrão um palavrão.

Katharsis Pura — enfim — nome de conhecida bailarina tailandesa que depois de casar com um alemão chamado J.H. Schultz escreveu o tratado Kathartische Methode, mas isso são outros 660 milhões de dólares roubados por empreiteiros amigos do presidente.

Finalmente, um aviso importantíssimo: este é um livro de meia-ficção. Acreditem apenas naquilo que vocês quiserem.
FAUSTO WOLFF
Ainda em liberdade no Rio de Janeiro em julho de 1988.



(*) Precoito Luiz Antunes Tabuão era da nossa turma de estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Boa-pinta e bom de lábia. Menino cantor, era ele. Nas festas e bailes cantava todas as meninas. As deixava excitadíssimas, porém, tinha uma guisa muito pequena. De modo que depois dele cantar as moças, o resto da rapaziada é que saía com elas da festa. Uma espécie de rufião (ver verbete) o nosso Precoito. Tinha um outro cara que se chamava A. Guisa de Prefácio Craseado Rocha que mudou para São Paulo onde hoje é sub -chefe de revisão da revista Nova, um troço desses.

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